Libertação
Clara escondeu a alegria quando
soube da morte de seu marido. Seu pensamento: livre. Estava livre e a primeira
coisa a fazer seria: cortar os cabelos. A segunda, convidar a melhor amiga e ir
ao parque. Terceira: não sabia o que fazer. Mas era bom sentir-se viva. Era
como no dia em que fora à escola pela primeira vez. Descobrir as letras, as
sílabas, as palavras... os números.
20, 40, 54 anos... viu e não viu
o que se passou. E o que se passou? Nem mais se questionaria, não o era
necessário. Tinha em mão apenas a necessidade de ser livre e isto o que lhe
importava. Calara-se para o mundo durante a vida e agora não queria falar. Seu
silêncio não era silêncio. Era linguagem, era milagre. Era a vida contida e
descontínua pelo desamor do sonho. O sonho... Imenso corpo desenhado no mundo.
Seu corpo desenhado no céu se
fortalecera tanto que não se reconhecia mais a esposa, a viúva, a que recebia
os pêsames sem pesar. Jamais imaginou que faria com gosto o aperto de mão ou o
abraço de amigos do outro que vieram velar. Lembrava-se disso com repugnância,
não obstante sentira-se mulher.
E isso lhe era algo novo.
Sentira-se mulher. Desde menina desejava saber o sentido daquela palavra. Fora
antes filha - mãe - companheira - esposa. O que seria de agora em diante?
Rasgava-se em risos. Gritava o nome santo de femina. Era ela independente e soberana. Era ela amor. Viu seu ser
na expressão máxima do amor, viu seu ser na expressão máxima do ser livre.
Livrara-se do amor do desejo da
carne. Guardara-se no coração. Encontrara a vida. Viu no passado toda tristeza
do pai que se deitara a seu lado com seu corpo imundo. Ouviu no passado toda
palavra suja do marido. Viveu no passado todo castigo torpe. Engoliu o cuspe do
homem imundo e desejou a morte por quase a vida inteira.
Clara não era mais Clara. Naquela
tarde, porém, depois da chuva, caminhou com alegria pelo meio-fio da rua e
seguiu até onde se via a nascente do arco-íris. Estendera os braços e brincou
de balanço no tempo presente com todos os sonhos de infância no sorriso.
Perdoara-se e, com a própria
vida, soprou em si o princípio de sua história: todas as letras, todas as
sílabas, todas as palavras e todos os números lidos agora de outra forma.
Edemir Fernandes Bagon
Nossaaaaaa, você é muito bom pra escrever contos, muito mesmo.
ResponderExcluirLindo conto, grande mestre agora também de contos.
ResponderExcluirSaudades das aulas em que eu mais aprendia!!
abraço