Enigmas e soluções no conto de Clarice Lispector: chocolates para elefantes num circo


Edemir Fernandes Bagon[1]




Resumo
: O objetivo deste artigo é discutir o processo de construção do conto “A solução”, de Clarice Lispector. Este conto apresenta como tema uma relação homoafetiva entre duas moças. Investigaremos a existência de uma segunda história (secreta) construída metaforicamente, a partir da primeira (evidente), mas fundamental para a revelação do processo de composição do gênero em questão.  A análise será realizada sob a perspectiva de algumas  teorias do conto elaboradas por Edgard Allan Poe, Julio Cortázar, Ricardo Piglia, James Joyce e, também, por meio dos estudos de Nádia Battella Gotlib. Buscaremos evidenciar, portanto, através do discurso presente no conto clariceano, as duas histórias que o compõem: a evidente e a secreta.

Palavras-chave: Conto, Epifania, Literatura, Teoria do Conto.


Introdução

Considerar a complexidade de uma análise literária acerca das inúmeras possibilidades e modos de narrar fatos e/ou acontecimentos não é uma tarefa fácil, sem dúvida, pois são múltiplas as questões a serem investigadas. Os aspectos literários apresentam relações bastante abrangentes, isto é, fundamentam-se não apenas na estética artística implicada, mas também, na ordem dos gêneros discursivos elaborados conforme suas estruturas e finalidades expressivas.  Nesse sentido, ao se pensar na literatura enquanto arte, não podemos deixar de lado a estreita conexão entre a figura do autor e sua obra com a natureza da recepção desse construto literário, no tempo e no espaço, por um público constituído. Essa concepção tem a ver muito mais com uma mentalidade ligada a uma sociedade moderna e contemporânea do que, especificamente, a um contexto histórico-cultural que remonte ao pensamento vigente numa época anterior.  
Obviamente, as narrativas orais que precederam os registros escritos tiveram sua importância, do ponto de visto mítico-religioso, para diferentes grupos culturais num passado remoto. Todavia, a categorização estética promovida pela realização da escrita, sobretudo, no momento em que as estórias ganhavam em elaboração artística, sem perder, as especificidades da narrativa oral, de acordo com Nádia Battella Gotlib[2] (1988), no século XIX, terá grande expressão na vida cultural europeia e, também, americana e russa. A criação do conto moderno e sua veiculação mediante o trabalho da imprensa, a qual se desenvolvia e ganhava força à medida que o público leitor se constituía, possibilitaram o desenvolvimento de teorias acerca de sua origem, estrutura, forma e tema. Desse modo, Edgar Allan Poe, E. Current-García e W.R Patrick, Horácio Quiroga, Machado de Assis, Mário de Andrade, Vladimir Propp, Julio Cortázar, André Jolles, James Joyce, Tchekhov, entre outros, debruçaram-se na investigação das especificidades do conto e suas tendências.
Diante desse contexto, podemos dizer que a literatura brasileira apresentou também autores relevantes que fizeram do conto um gênero com características próprias enquanto narrativa. É o caso da escritora Clarice Lispector (1920-1977). Além de romances e ensaios, os contos literários clariceanos notadamente apresentam traços comuns, isto é, são contos de “acontecimento”. Para Gotlib [3](2011, p. 329), trata-se de um acontecimento especial, embora tirado do cotidiano, porém carregado de “algo excepcional”, nem sempre inteligível.  Em 1964, Clarice Lispector publicou a novela A Paixão segundo G.H. e o livro A Legião Estrangeira – uma coletânea de contos sobre questões relacionadas à família, ao universo infantil e, também, a respeito da solidão – reunindo, na primeira parte, contos maiores e, na segunda secção, denominada “Fundo de Gaveta”, fragmentos textuais de extensão variada, e crônicas. Nesta obra, encontramos o conto intitulado "A solução" – o qual retrata a “amizade enigmática” entre duas moças, Almira e Alice.   Ao tratar dessa narrativa, Gotlib[4] (1988) afirma ser a relação homossexual o eixo temático que emerge de maneira “violenta”. Do ponto de vista moral, a questão abordada pela autora modernista era extremamente polêmica, considerando-se o momento em que o texto havia sido publicado no país. Não obstante, revela-se atual em razão das discussões acerca desse assunto não apenas em âmbito privado/doméstico/familiar, mas, sobretudo, em seus desdobramentos marcados por debates  repletos de intolerância e ignorância, os quais  passaram a permear diferentes esferas públicas da sociedade brasileira (política, religião, ciberespaço, etc.).
Entretanto, nosso interesse pela análise literária em relação ao conto “A Solução” justificava-se, pois, muito mais pela tentativa de relacionar o objeto de estudo aos conceitos demonstrados nas teorias do conto do que propriamente pelos aspectos morais sugeridos. Esses aspectos são, por via de regra, criticados veementemente por sectários de um conservadorismo tacanho. Buscamos, porém, responder por meio de uma metodologia qualitativa algumas perguntas intrínsecas à especificidade do conto enquanto gênero discursivo, tendo em vista a criação literária, seus efeitos de sentido, seus aspectos semânticos e semióticos. Este trabalho traz algumas abordagens significativas feitas por Nádia Battella Gotlib[5], tanto na definição do gênero em análise quanto na investigação dos sentidos possíveis do texto supracitado.  Além disso, o artigo procura apresentar uma descrição teórica do conto, dadas as  propostas elaboradas por Ricardo Piglia, Edgar Allan Poe, Júlio Cortázar, entre outros. De fato, o pensamento desses autores contribui  para a compreensão do processo de construção literária de Clarice Lispector e a interpretação de seus misteriosos escritos, em especial, da sua rica produção de contos célebres.


1.            O conto literário: a consagração do instante

Júlio Cortázar[6], em “Alguns aspectos do conto”, afirma que o gênero conto é extremamente difícil de ser definido, pois, segundo ele, seria necessário ter uma “ideia viva do que é o conto” já que o gênero era a própria expressão da “ vida sintetizada”. Em seus estudos sobre Edgar Allan Poe[7], o escritor argentino analisou os aspectos semânticos implicados no verbete conto. Concluiu que as acepções apresentavam um núcleo comum, isto é, elas carregavam em si a ideia de narrar ou modos de narrativa.
Para Gotlib[8] (1988, p. 12), o conto não faz referência somente ao acontecido, porque não possui um “compromisso com o evento real”. Evidentemente, existem “graus de proximidade ou afastamento do real” que podem ser registrados textualmente através de recursos literários. Esses recursos são dispostos conforme a intenção do autor. Com efeito, o fazer literário está submetido a uma função-autor determinante baseada na subjetividade intencional que envolve o processo criativo.  
Assim, o conto não é apenas um relato de um acontecimento. Toda narrativa pressupõe um “discurso integrado” a uma sucessão de fatos de interesse humano (BRÉMOND, 1972). Existe uma diferença entre um simples relato e aquilo que julgamos esteticamente como um narrar de natureza literária. O limite entre um mero contador de estórias e um contista (escritor literário) encontra-se na esfera da estética da arte. O conto elaborado pelo contista resulta de uma ordem estética, definida ao longo do tempo. E, conforme as convenções culturais e sociais, tal ordem desencadeou alguns procedimentos e normas que delimitaram o trabalho estético-artístico.
Nesse contexto, o ato de narrar e seus modos foram agrupados de acordo com suas peculiaridades. Dessa forma, constituíram-se em gêneros e categorias.  Desde a filosofia aristotélica, há uma preocupação em estabelecer princípios estéticos na linguagem escrita. Logo, a padronização literária evidenciaria a produção de poemas épicos e líricos, novelas de cavalaria, romances, etc. Graças à invenção da imprensa (técnica da utilização de prensa), a propagação da informação e da literatura em países mais avançados foi mais dinâmica. Sem dúvida, a formação de um público leitor passaria a ser associada a esse advento (some-se a esse fato, também,  a complexidade das sociedades modernas que vivenciariam a duas revoluções industriais, entre os séculos XVIII-XIX). Evidentemente, as mentalidades relacionadas a  tais paradigmas culturais e sociais modificaram-se. Em Teoria do Conto (1988, p.30), Gotlib escreveu:

(...) Revolução Industrial que vai progressivamente se firmando desde o século XVIII, o caráter de unidade de vida e, consequentemente, da obra, vai se perdendo. Acentua-se o caráter da fragmentação dos valores, das pessoas, das obras. E nas obras literárias, das palavras, que se apresentam sem conexão lógica, soltas, como átomos (segundo as propostas do Futurismo, a partir sobretudo de 1909). [GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1988, p. 30]

Em certa medida, essa relação entre História e Arte pode explicar a gênese do conto[9]. Em outros termos, existe um modo de narrar um acontecimento no qual  o mundo é percebido como um todo representativo (GOTLIB, 1988, ib.). Essa concepção identificara-se de maneira coerente a um conjunto de narrativas míticas, orais e escritas. No entanto, a mentalidade do homem das sociedades industriais foi perdendo de vista tal referencial. A realidade foi colocada em xeque. A palavra deixava, por assim dizer, o poder de representação total (GOTLIB, 1988). O mundo só poderia ser representado em parte e por cada sujeito em sua individualidade. Logo, em termos literários, os cânones foram dessacralizados. Nessa perspectiva, o que antes era linear, ou se apresentava como um cânone estético, já não o era mais. Para Gotlib, esse processo possibilitou a evolução da construção do enredo (1988, p.30).

Nesse sentido, evolui-se do enredo que dispõe um acontecimento em ordem linear, para um outro, diluído em feelings, sensações, percepções, revelações ou sugestões íntimas.... Pelo próprio caráter deste enredo, sem ação principal, os mil e um estados interiores vão se desdobrando em outros [...]. (GOTLIB, 1988, p.30)

Dessa forma, podemos afirmar que um conto corresponde a um gênero literário configurado em uma narrativa linear, ou não. Trata-se de um discurso integrado a uma sucessão de acontecimentos de interesse da vida humana,  apresentando um enredo dotado de unidade, concisão e singularidade. Outro aspecto relevante do gênero conto, ligado ao modo de vida das sociedades modernas, especificamente na relação homem versus tempo – é a questão da brevidade. Para Gotlib (1988, p. 55), o conto moderno é “caracterizado por seu teor fragmentário, de ruptura com o princípio da continuidade lógica, tentando consagrar este instante temporário”. Por essa razão, segundo Gotlib (1988, p.52), em Teoria do Conto, “a percepção reveladora de uma dada realidade” exige um olhar teórico na leitura de um conto, em especial, a narrativa de Clarice Lispector.

No entanto, em contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso dos contos de Clarice Lispector. Aliás, não só dos seus contos, mas de toda a sua narrativa. [GOTLIB, 1988, p. 52]  

 A brevidade do conto é uma característica que propicia a captação do instantâneo da realidade. O conflito dramático, em que se encerra o acontecimento narrado, assume um caráter revelador, ou seja, torna-se um momento especial concebido enquanto epifania. 


2.            Das contribuições teóricas de Edgar A. Poe, Julio Cortázar, Ricardo Piglia e James Joyce

Em síntese, a teoria de Edgar Allan Poe[10] é estabelecida a partir do pressuposto da relação entre a extensão do conto e da reação provocada no leitor mediante sua leitura. O contista americano considerava que uma produção literária causaria um estado de “excitação” ou “exaltação da alma”. Assim, a manutenção desse estado estaria submetida a uma espécie de dosagem da obra pelo autor. Com efeito, um texto longo demais, ou muito curto, implicaria num tipo de arrefecimento do estado excitação do leitor. E, portanto, a unidade de efeito tornar-se-ia resultante de uma leitura que pudesse ser realizada de uma só vez. Segundo Poe, o autor deve ter total controle dos recursos narrativos para dominar a técnica do suspense diante de um enigma. O domínio da técnica é, sem dúvida, um trabalho consciente.
Para Cortázar (1993, p. 122), “um conto é uma verdadeira máquina de criar interesse”. Assim, em toda a composição não pode haver nenhuma palavra que não esteja a serviço desse desígnio, conclui o contista argentino em sua análise acerca da produção literária de Poe (CORTÁZAR, 1993). Em seu artigo, “Poe: o poeta, o narrador e o crítico”, Cortázar (1993, pp. 103-146) estabelece uma relação entre cinema-romance-fotografia-conto. Segundo escritor argentino, "o romance está para o cinema - enquanto a fotografia, para o conto". Por analogia, romance e cinema captam a realidade por meio de um processo cumulativo no desenvolvimento da narrativa. Já o conto e a fotografia são projetados tendo em vista a seleção significativa do real. Para J. Cortázar (1993):

Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia virtual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta. (CORTÁZAR, 1993, p. 153).

É justamente essa “energia vital”, citada em Cortázar, que nos explica a relação entre a fotografia e o conto. Se na fotografia a imagem deve ser significativa e, com efeito, aguçar em um espectador sua sensibilidade e inteligência, essa energia é também responsável por tornar significativo para um leitor o texto. A energia vital corresponde ao que denominamos intensidade. Dosada pelo autor - em níveis de tensão - um leitor irá aproximar-se ou distanciar-se dos acontecimentos narrados, conforme a habilidade do autor em estimular-lhe o desejo de conhecer o desenlace da estória construída de maneira intencional e intensiva. A imagem criada por Cortázar para representação do conto é a de uma “bolha de sabão que se desprende do autor, do seu pito de gesso” (apud GOTLIB, 1988, P.69). Essa concepção indica ser o conto uma “forma fechada e tensa” e, portanto, apresenta concordância com os princípios defendidos por Edgar A. Poe[11], em “ A filosofia da composição”. Não obstante, a tensão (intensidade que se exerce no modo como o autor aproxima o leitor daquilo que é contado) é um recurso presente no conto A solução. Nele, Clarice Lispector faz com que o leitor competente afaste a importância imediata do fato em si (a personagem Almira golpeia sua amiga Alice com um garfo) e, a partir daí, procure esmiuçar as sutilezas anteriormente narradas.
Em Formas Breves[12], Ricardo Piglia (2004)[13] fala sobre os dois pilares de seu pensamento: “um conto sempre conta duas histórias” e “a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes”. Retomando a “teoria do iceberg”[14] de Hemingway,  Piglia declara que esta é a primeira síntese do processo de construção de uma narrativa curta.

A história secreta é contada de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só. A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história é construída com o não-dito, com o subentendido e a alusão. (PIGLIA, 2004, p. 41)

Em Clarice: uma vida que se conta, Gotlib (2011, p. 328) identifica diversos traços comuns na obra da escritora modernista. Os temas abordam o cotidiano de forma excepcional e nem sempre compreensíveis. A pesquisadora declara que, embora haja uma “aparente estrutura clássica” nos contos de Clarice Lispector, de modo geral, esse tipo de organização estética não é:

(...) suficiente para explicitar a sua construção, já que junto a esta, aparente, coexiste outra, mais subterrânea, que praticamente questiona e desmonta a primeira, sob o disfarce de outros elementos de composição, que instauram a desordem, o desequilíbrio, o caos(GOTLIB, 2011, p.328)

Piglia (2004), ao descrever seus princípios teóricos e, também, ao mencionar o pensamento do autor estadunidense, acaba revelando um aspecto substancial da produção artística de Clarice Lispector, identificado nas investigações de Gotlib (2011). Em outros termos, podemos dizer, aqui, tratar-se de um feliz diálogo interdiscursivo, no qual, a práxis literária de um contista assume um lugar relevante na chamada teoria do conto – enquanto objeto de estudo estético-filosófico. Sem dúvida, é possível ampliar essa reflexão, até mesmo porque tais considerações abrangem outros gêneros discursivos de caráter narrativo como, por exemplo, os microcontos contemporâneos. Essa ampliação do escopo da discussão pressupõe, contudo, uma teoria geral da narrativa que não nos caberia tratar aqui.
 Todavia, o aspecto filosófico e estético da narrativa, de modo geral, pode ser analisado por meio do conceito de epifania. James Joyce, em Stephen Hero, a define como sendo uma “manifestação espiritual súbita”.  De acordo com J. Joyce, a epifania é um atributo da beleza do objeto. O belo manifesta-se através da integridade, da simetria e da epifania (a coisa tornada ela mesma). Para Gotlib, o conceito não faz parte necessariamente do conto, mas enseja a teoria na medida em que nesse gênero o conflito dramático (núcleo) é revelador de uma determinada realidade. Em “A Solução”, a violência é reveladora de um estado passional caótico vivido pela personagem protagonista (Almira). É o momento em que “sua alma desprende, diante de nós, do revestimento da aparência”[15].

3.     Enigmas e soluções da narrativa de Clarice Lispector: aspectos metodológicos

Dentre a vasta produção textual de Clarice Lispector, procuraremos analisar, especificamente, o processo de construção literária do conto denominado A Solução, numa perspectiva investigativa fundamentada em procedimentos metodológicos recorrentes, sobretudo, no campo da Teoria da Literatura e Análise do Discurso. Segue-se, portanto, uma descrição acerca das condições de produção, elementos da narrativa, linguagem e estilo do texto para, enfim, com base nessas observações, discutirmos o propósito comunicacional subentendido.

3.1.        Uma legião de estrangeiros: temas, conflitos e soluções

Clarice Lispector (1920-1977) é considerada uma das maiores escritoras da literatura brasileira moderna. A crítica elaborada em torno de sua obra tende a considerar os aspectos mais singulares da sua criação artística consolidada: análise psicológica, monólogo interior, gosto pelo singular e universal. Essas características estão presentes em boa parte do discurso clariceano.  Em 1964, Clarice Lispector publicou o livro de contos A Legião Estrangeira que, segundo a própria autora, “(...) foi inteiramente abafado pela A Paixão segundo G.H., que saiu na ocasião”[16]. Apesar da falta de repercussão, o livro apresenta contos excepcionais, tais como “A Legião Estrangeira”, “Os Desastres de Sofia” e “A solução”.
Em “A Solução”, o tema é o amor homossexual. O narrador heterodiegético conta a estória de amor e ódio entre duas moças: Almira e Alice. Já no primeiro enunciado do texto, Almira é caracterizada fisicamente: “Chamava-se Almira e engordara demais”. Em contrapartida, a personagem Alice nos é descrita como delicada e pensativa (“Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la...”). Chama-nos a atenção, um traço psicológico assinalado no texto acerca da avidez da personagem Almira e que destoa, portanto, do comportamento de sua amiga, pois esta, no contexto narrado, atua com uma postura distanciada de uma reciprocidade em mesmo grau de intensidade (“Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia”).
Segundo Erich Fromm[17], “a avidez é sempre o resultado de um vazio interior”. Esse vazio corresponde a uma sensação de incompletude da vida, ou seja, retomando o plano da narrativa, Almira é construída enquanto personagem num paradoxo enigmático: sua forma corpórea exterior plena (gorda, pesadona) esconde o vazio interior do ser que busca locupletar-se pela paixão. Nesse contexto, o objeto de desejo de Almira é Alice. A completude de sua vida interior está submetida à existência da outra. Eis o princípio do conflito dramático sutilmente narrado no conto, pois a simples existência não basta. Almira, contudo, desejava que sua devoção amorosa fosse retribuída na forma mais singela de fidelidade ou na mesma intensidade de desejo que sentia pela “comida, seu contato mais direto com o mundo”.
A tensão proporcionada ao longo da narrativa é meticulosamente dosada pela autora em razão da concisão e unidade do discurso produzido. Períodos curtos utilizados na informação dos acontecimentos dão conta apenas em parte daquilo que é dito. Clarice parece sugerir ao leitor que ele deve esmiuçar o enredo para encontrar o sentido verdadeiro das ações narradas. É o caso, por exemplo, do seguinte parágrafo:

Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo. Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina. (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)

O que teria acontecido de fato naquela manhã? Por que Alice voltou ao trabalho uma hora depois e chorando (“olhos vermelhos”)? Por que Alice não quis explicar-se? E a natureza de Almira, era realmente delicada? Esses questionamentos são colocados na ponta do iceberg. E, certamente, estão vislumbrados num conjunto de estratégias pensado por Clarice Lispector em seu processo de criação artístico-literário. Seguramente, tais condições estabelecem outro tipo de movimento instaurado no interior da narrativa, isto é, um movimento que possibilita a revelação do objeto temático em si. Com efeito, a epifania do conto desvelará a verdadeira natureza de Almira e sua relação com a amiga Alice.  
São duas histórias paralelas: a) a amizade entre duas datilógrafas; b) a relação passional entre duas mulheres. Na primeira narrativa – na chamada estória evidente, o leitor é levado a acreditar no relacionamento baseado em um tipo de amor denominado pelos antigos gregos de filía (termo philia, geralmente, traduzido por “amizade”). No entanto, na outra estória narrada, melhor dizendo na estória secreta, o sentido mais profundo é melhor compreendido por meio da palavra grega aphrodisia[18] usada para designar as relações amorosas. Almira se completa avidamente na junção carnal. E seu amor por Alice transforma-se em ódio no instante em que esta declara:

— Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! Agora está contente, sua gorda? (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)

Essa revelação conduz o leitor para o momento decisivo do enredo (clímax), no qual, também, se atinge o ponto máximo da tensão (conflito) e, pois, traz a solução do conto. Seguindo o padrão clássico, Clarice Lispector apresenta sua narrativa numa ordem linear. O tempo é marcado cronologicamente. E, “exatamente durante o almoço”, a protagonista Almira “(...) como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice”. O desfecho do texto apresenta um lado tragicômico, sem dúvida. Alice é levada a um pronto-socorro e Almira é presa em flagrante. Assim, declara-nos o narrador, em seu epílogo:  

Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito bem com as guardiãs, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo. (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)

Para além das questões estético-literárias envolvidas no processo de construção do conto clariceano, expostas acima, cabe-nos assinalar a coragem da autora em abordar o tema da relação homoafetiva em um momento tão obscuro da história brasileira (início do Regime Militar), fortemente marcado pelo conservadorismo moral.

Considerações finais

O conto literário é um gênero discursivo baseado em um modo de narrar um acontecimento representado, mediante unidade de efeito, a partir de uma realidade verdadeira ou mesmo inventada, isto é, como pura ficção.  Como escrita moderna, ganha espaço na vida social, graças sobretudo ao advento da imprensa e sua divulgação junto a um público leitor formado no período pós-Revolução Industrial.
Com efeito, novas exigências eram feitas por esse público ávido em descobrir o mundo das letras. Sem dúvida, as novas relações de trabalho do mundo moderno fizeram com que o perfil desse leitor mudasse. A leitura de um romance demandava tempo. E, portanto, diferentes formas literárias precisariam, por assim dizer, atender ao gosto e a necessidade do homem moderno e burguês.
O conto aparece como uma resposta a essa urgência dos sujeitos históricos em apreender a beleza estética da literatura e das artes. À medida que os autores se apropriavam das técnicas de composição de um conto, as propostas de análise literária (do que antes era um gênero relativamente novo) foram assumindo um caráter teórico muito mais aprofundado. Os séculos XIX e XX conheceram nomes de peso no campo da teoria do conto: Edgar A. Poe, Julio Cortázar, James Joyce, Ricardo Piglia, entre outros tantos, que procuraram estabelecer princípios estéticos e literários a fim de explicar a essência da arte de escrever narrativas curtas/breves.
O discurso produzido nesse gênero tem a ver com a necessidade de o ser social captar o instante da vida. Compreender a sua própria natureza é um desejo atávico do homem. A arte surge necessariamente dessa vontade de contemplação de si e do mundo.  A impossibilidade de fruir a totalidade do cosmos fez com que o homem buscasse fragmentar a realidade por meio de sua capacidade criadora e inventiva. As partes componentes do universo estariam assim representadas pela música, pela pintura, pela literatura, pela dança, pelo teatro, entre outras manifestações artísticas. Em tudo, porém, há o efêmero, o fugaz, o instante, pois o ser humano não é eterno.
É nesse contexto que a obra de Clarice Lispector ganha energia vital. Se aquilo que é aparente e material foge do alcance da percepção total dos sentidos, resta-lhe a sua interioridade na qual o vazio interior só poderá locupletar-se daquilo que é sensível, paradoxal e misterioso: a alma é o universo do conto clariceano percebido no todo.  Almira e Alice correspondem, no mesmo instante, à alma e ao corpo humanos e consubstanciados. O desejo é a dor. O amor é a linha fronteiriça entre a solidão e o desespero de não existirmos para o outro e no outro. É isso que Clarice Lispector nos ensina em sua narrativa: no fundo, somos todos uma epifania em busca da felicidade e do amor. E, provavelmente, muitos de nós já procuramos ser elefantes num circo.


Referências bibliográficas

Clarice Lispector, Entrevista, MIS-RJ, 20 out. 1976.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1988, p. 07.
___________________. Clarice – uma vida que se conta – 6. ed. rev.  e aum. 1. reimpr. São Paulo, 2011, p. 329.
___________________.  “Um fio de voz: histórias de Clarice”. In: LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Edição crítica.Coord. Benedito Nunes. Paris; Brasília: Association Archives de la Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Africaine du XXème Siècle/CNPq, 1988, p. 161-195.
LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
REZENDE, Rosana Gondim. In: A teoria do conto de Edgar Allan Poe e de Ricardo Piglia na análise de “A caçada”, de Lygia Fagundes Telles. Revista Alpha. Patos de Minas: Unipam, Patos de Minas, p.208-219, dez. 2009.),
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PIGLIA, R. Formas Breves. Disponível em: < http://www.poscritica.uneb.br/wp-content/uploads/2014/08/piglia-ricardo-formas-breves.pdf>. Acesso em: jan. 2017.







[1] Mestre em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/Três Lagoas).
[2] GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1988, p. 07.
[3] GOTLIB, Nádia Battella. Clarice – uma vida que se conta – 6. ed. rev.  e aum. 1. reimpr. São Paulo, 2011, p. 329.
[4] GOTLIB, Nádia Battella.  “Um fio de voz: histórias de Clarice”. In: LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Edição crítica.Coord. Benedito Nunes. Paris; Brasília: Association Archives de la Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Africaine du XXème Siècle/CNPq, 1988, p. 161-195. (Ver: p.176).
[5] Nádia Battella Gotlib possui graduação em Letras pela Universidade de Brasília (1967), mestrado (1971) e doutorado (1977) em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e livre-docência em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1993), onde atuou como professora de Literatura Portuguesa (desde 1973), de Literatura Brasileira (de 1979 até 1997, quando se aposentou.). Desenvolveu atividades de pesquisa e ministrou cursos de Graduação e de Pós-Graduação em várias universidades brasileiras e do exterior (Univ. de Oxford, Univ. de Buenos Aires). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira Contemporânea e principalmente nos seguintes temas: conto brasileiro, narrativa de Clarice Lispector, arquivo pessoal, diários, epistolografia e autobiografia. Atualmente está vinculada, como professor colaborador, ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. É Bolsista Sênior do CNPq. (Disponível em: <https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLattesMostrar?codpub=F7A0AC30EC9F>. Acesso: 13 jan. 2017) .
[6] Julio Florencio Cortázar (1914 – 1984) foi um escritor argentino. É considerado um dos autores mais inovadores e originais de seu tempo, mestre do conto curto e da prosa poética, comparável a Jorge Luis Borges e Edgar Allan Poe. Foi o criador de novelas que inauguraram uma nova forma de fazer literatura na América Latina, rompendo os moldes clássicos mediante narrações que escapam da linearidade temporal e onde os personagens adquirem autonomia e profundidade psicológica inéditas. WIKIPÉDIA. Júlio Cortázar. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2017
[7] Edgar Allan Poe (1809 —  1849) foi um autorpoetaeditor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. A escrita de Poe reflete suas teorias literárias, que ele apresentou em sua crítica e também em peças literárias como "The Poetic Principle".  Acreditava que os significados na literatura deveriam ser uma subcorrente sob a superfície.  Segundo E. A. Poe, o trabalho de qualidade deveria ser breve e concentrar-se em um efeito específico e único. Assim, acreditava que o escritor deveria calcular cuidadosamente todos sentimentos e ideias. WIKIPÉDIA. Edgar Allan Poe. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2017.
[8] Ibid. , p. 12
[9] O conto é compreendido, aqui, conforme os estudos de Cortázar sobre o significado da palavra.
[10] Ver:  Prefácio à reedição da obra Twice-told tales, de Hawthorne, em texto denominado “Review of Twice-told tales” (1842), conforme citado por GOTLIB, 1988, p. 32.
[11] Para Rosana Gondim Rezende (In: A teoria do conto de Edgar Allan Poe e de Ricardo Piglia na análise de “A caçada”, de Lygia Fagundes Telles. Revista Alpha. Patos de Minas: Unipam, Patos de Minas, p.208-219, dez. 2009.), em “A filosofia da composição”, Edgar A. Poe argumenta em favor da tese de que os espaços fechados são dotados de força moral e que atuam na manutenção da atenção concentrada. A autora cita o discurso de Poe, em sua análise:

(...), mas sempre me pareceu que uma ‘circunscrição fechada do espaço’ é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral, para conservar concentrada a atenção... (POE, 1986, p. 68).

[12]  Nessa obra, Piglia reflete sobre autores da literatura argentina, como Macedonio Fernández, Jorge Luis Borges e Roberto Arlt, sobre clássicos da modernidade como Joyce, Kafka e Gombrowicz, sobre as relações entre literatura e psicanálise, e sobre a natureza do conto, tema ao qual volta, com o ensaio 'Novas teses sobre o conto', depois de abordá-lo em 'Teses sobre o conto', publicado em O laboratório do escritor (Iluminuras, 1994). Piglia faz uma reflexão sobre o fazer literário ligada à sua experiência pessoal.
[14]  O conceito da teoria do iceberg é muitas vezes referido como a "teoria da omissão." 
[15] Ver Stephen Hero, de James Joyce.
[16] Clarice Lispector, Entrevista, MIS-RJ, 20 out. 1976.
[17] Erich Fromm (1900 -1980) foi um psicanalista alemão, filósofo e sociólogo.
[18] Aphrodisia, "o que está sob domínio de Afrodite". 

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