Enigmas e soluções no conto de Clarice Lispector: chocolates para elefantes num circo
Edemir Fernandes
Bagon[1]
Palavras-chave: Conto,
Epifania, Literatura, Teoria do Conto.
Introdução
Considerar a complexidade de
uma análise literária acerca das inúmeras possibilidades e modos de narrar
fatos e/ou acontecimentos não é uma tarefa fácil, sem dúvida, pois são
múltiplas as questões a serem investigadas. Os aspectos literários apresentam
relações bastante abrangentes, isto é, fundamentam-se não apenas na estética
artística implicada, mas também, na ordem dos gêneros discursivos elaborados
conforme suas estruturas e finalidades expressivas. Nesse sentido, ao se pensar na literatura
enquanto arte, não podemos deixar de lado a estreita conexão entre a figura do
autor e sua obra com a natureza da recepção desse construto literário, no tempo
e no espaço, por um público constituído. Essa concepção tem a ver muito mais
com uma mentalidade ligada a uma sociedade moderna e contemporânea do que,
especificamente, a um contexto histórico-cultural que remonte ao pensamento
vigente numa época anterior.
Obviamente, as narrativas orais que precederam os registros escritos tiveram sua importância, do ponto de visto mítico-religioso, para diferentes grupos culturais num passado remoto. Todavia, a categorização estética promovida pela realização da escrita, sobretudo, no momento em que as estórias ganhavam em elaboração artística, sem perder, as especificidades da narrativa oral, de acordo com Nádia Battella Gotlib[2] (1988), no século XIX, terá grande expressão na vida cultural europeia e, também, americana e russa. A criação do conto moderno e sua veiculação mediante o trabalho da imprensa, a qual se desenvolvia e ganhava força à medida que o público leitor se constituía, possibilitaram o desenvolvimento de teorias acerca de sua origem, estrutura, forma e tema. Desse modo, Edgar Allan Poe, E. Current-García e W.R Patrick, Horácio Quiroga, Machado de Assis, Mário de Andrade, Vladimir Propp, Julio Cortázar, André Jolles, James Joyce, Tchekhov, entre outros, debruçaram-se na investigação das especificidades do conto e suas tendências.
Obviamente, as narrativas orais que precederam os registros escritos tiveram sua importância, do ponto de visto mítico-religioso, para diferentes grupos culturais num passado remoto. Todavia, a categorização estética promovida pela realização da escrita, sobretudo, no momento em que as estórias ganhavam em elaboração artística, sem perder, as especificidades da narrativa oral, de acordo com Nádia Battella Gotlib[2] (1988), no século XIX, terá grande expressão na vida cultural europeia e, também, americana e russa. A criação do conto moderno e sua veiculação mediante o trabalho da imprensa, a qual se desenvolvia e ganhava força à medida que o público leitor se constituía, possibilitaram o desenvolvimento de teorias acerca de sua origem, estrutura, forma e tema. Desse modo, Edgar Allan Poe, E. Current-García e W.R Patrick, Horácio Quiroga, Machado de Assis, Mário de Andrade, Vladimir Propp, Julio Cortázar, André Jolles, James Joyce, Tchekhov, entre outros, debruçaram-se na investigação das especificidades do conto e suas tendências.
Diante desse contexto, podemos
dizer que a literatura brasileira apresentou também autores relevantes que
fizeram do conto um gênero com características próprias enquanto narrativa. É o
caso da escritora Clarice Lispector (1920-1977). Além de romances e ensaios, os contos literários clariceanos notadamente apresentam traços comuns, isto é, são contos de
“acontecimento”. Para Gotlib [3](2011,
p. 329), trata-se de um acontecimento especial, embora tirado do cotidiano,
porém carregado de “algo excepcional”, nem sempre inteligível. Em 1964, Clarice Lispector publicou a novela A Paixão segundo G.H. e o livro A Legião Estrangeira – uma coletânea de
contos sobre questões relacionadas à família, ao universo infantil e, também, a
respeito da solidão – reunindo, na primeira parte, contos maiores e, na segunda
secção, denominada “Fundo de Gaveta”, fragmentos textuais de extensão variada,
e crônicas. Nesta obra, encontramos o conto intitulado "A solução" – o qual retrata
a “amizade enigmática” entre duas moças, Almira e Alice. Ao tratar dessa narrativa, Gotlib[4]
(1988) afirma ser a relação homossexual o eixo temático que emerge de maneira
“violenta”. Do ponto de vista moral, a questão abordada pela autora modernista era extremamente polêmica, considerando-se o momento em que o texto havia sido publicado no país. Não
obstante, revela-se atual em razão das discussões acerca desse assunto não apenas
em âmbito privado/doméstico/familiar, mas, sobretudo, em seus desdobramentos marcados por debates repletos de intolerância e ignorância, os quais passaram a permear diferentes esferas públicas da sociedade brasileira (política, religião, ciberespaço, etc.).
Entretanto, nosso interesse pela
análise literária em relação ao conto “A Solução” justificava-se, pois, muito mais pela
tentativa de relacionar o objeto de estudo aos conceitos demonstrados nas
teorias do conto do que propriamente pelos aspectos morais sugeridos. Esses aspectos são, por
via de regra, criticados veementemente por sectários de um conservadorismo tacanho. Buscamos, porém, responder por meio de uma metodologia qualitativa algumas
perguntas intrínsecas à especificidade do conto enquanto gênero discursivo, tendo
em vista a criação literária, seus efeitos de sentido, seus aspectos semânticos
e semióticos. Este trabalho traz algumas abordagens
significativas feitas por Nádia Battella Gotlib[5], tanto na definição do gênero em análise quanto na investigação dos
sentidos possíveis do texto supracitado. Além disso, o artigo procura apresentar uma
descrição teórica do conto, dadas as propostas elaboradas por Ricardo Piglia, Edgar
Allan Poe, Júlio Cortázar, entre outros. De fato, o pensamento desses autores
contribui para a compreensão do processo de construção literária
de Clarice Lispector e a interpretação de seus misteriosos escritos, em especial, da sua rica produção de contos célebres.
1.
O conto literário: a consagração do instante
Júlio Cortázar[6],
em “Alguns aspectos do conto”, afirma que o gênero
conto é extremamente difícil de ser definido, pois, segundo ele, seria
necessário ter uma “ideia viva do que é o conto” já que o gênero era a própria
expressão da “ vida sintetizada”. Em seus estudos sobre Edgar Allan Poe[7],
o escritor argentino analisou os aspectos semânticos implicados no verbete conto. Concluiu que as acepções
apresentavam um núcleo comum, isto é, elas carregavam em si a ideia de narrar ou modos de narrativa.
Para Gotlib[8]
(1988, p. 12), o conto não faz referência somente ao acontecido, porque não
possui um “compromisso com o evento real”. Evidentemente, existem “graus de
proximidade ou afastamento do real” que podem ser registrados textualmente
através de recursos literários. Esses recursos são dispostos conforme a
intenção do autor. Com efeito, o fazer literário está submetido a uma função-autor determinante baseada na
subjetividade intencional que envolve o processo criativo.
Assim, o conto não é apenas um
relato de um acontecimento. Toda narrativa pressupõe um “discurso integrado” a
uma sucessão de fatos de interesse humano (BRÉMOND, 1972). Existe uma diferença
entre um simples relato e aquilo que julgamos esteticamente como um narrar de
natureza literária. O limite entre um mero contador de estórias e um contista
(escritor literário) encontra-se na esfera da estética da arte. O conto elaborado
pelo contista resulta de uma ordem estética, definida ao longo do tempo. E,
conforme as convenções culturais e sociais, tal ordem desencadeou alguns
procedimentos e normas que delimitaram o trabalho estético-artístico.
Nesse contexto, o ato de
narrar e seus modos foram agrupados de acordo com suas peculiaridades. Dessa
forma, constituíram-se em gêneros e categorias. Desde a filosofia aristotélica, há uma preocupação em estabelecer princípios estéticos na
linguagem escrita. Logo, a padronização literária evidenciaria a produção de
poemas épicos e líricos, novelas de cavalaria, romances, etc. Graças à invenção da imprensa (técnica da
utilização de prensa), a propagação da informação e da literatura em países
mais avançados foi mais dinâmica. Sem dúvida, a formação de um público leitor passaria a ser associada a esse advento (some-se a esse fato, também, a complexidade das sociedades
modernas que vivenciariam a duas revoluções industriais, entre os séculos XVIII-XIX). Evidentemente,
as mentalidades relacionadas a tais paradigmas culturais e sociais modificaram-se. Em Teoria do Conto (1988, p.30), Gotlib
escreveu:
(...) Revolução Industrial que vai
progressivamente se firmando desde o século XVIII, o caráter de unidade de vida
e, consequentemente, da obra, vai se perdendo. Acentua-se o caráter da
fragmentação dos valores, das pessoas, das obras. E nas obras literárias, das
palavras, que se apresentam sem conexão lógica, soltas, como átomos (segundo as
propostas do Futurismo, a partir sobretudo de 1909). [GOTLIB,
Nádia Battella. Teoria do
Conto. São Paulo: Ática, 1988, p. 30]
Em certa medida, essa
relação entre História e Arte pode explicar a gênese do conto[9]. Em outros termos, existe um modo
de narrar um acontecimento no qual o mundo é percebido como um todo representativo (GOTLIB, 1988, ib.). Essa concepção identificara-se de maneira coerente a um conjunto de narrativas
míticas, orais e escritas. No entanto, a mentalidade do homem das sociedades
industriais foi perdendo de vista tal referencial. A realidade foi colocada em
xeque. A palavra deixava, por assim dizer, o poder de representação total (GOTLIB, 1988). O
mundo só poderia ser representado em parte e por cada sujeito em sua
individualidade. Logo, em termos literários, os cânones foram dessacralizados.
Nessa perspectiva, o que antes era linear, ou se apresentava como um cânone
estético, já não o era mais. Para Gotlib, esse processo possibilitou a evolução
da construção do enredo (1988, p.30).
Nesse
sentido, evolui-se do enredo que dispõe um acontecimento em ordem linear, para
um outro, diluído em feelings, sensações, percepções, revelações ou sugestões
íntimas.... Pelo próprio caráter deste enredo, sem ação principal, os mil e um
estados interiores vão se desdobrando em outros [...]. (GOTLIB,
1988, p.30)
Dessa forma, podemos afirmar que um
conto corresponde a um gênero literário configurado em uma narrativa linear, ou
não. Trata-se de um discurso integrado a uma sucessão de acontecimentos de
interesse da vida humana, apresentando um enredo dotado de unidade, concisão
e singularidade. Outro aspecto relevante do gênero conto, ligado ao modo de
vida das sociedades modernas, especificamente na relação homem versus tempo – é a questão da brevidade. Para Gotlib (1988, p. 55), o conto moderno é
“caracterizado por seu teor fragmentário, de ruptura com o princípio da
continuidade lógica, tentando consagrar este instante temporário”. Por essa razão, segundo Gotlib (1988, p.52), em Teoria do Conto, “a percepção reveladora de uma dada realidade” exige um olhar teórico na leitura de um conto, em especial, a narrativa de Clarice Lispector.
A brevidade
do conto é uma característica que propicia a captação do instantâneo da
realidade. O conflito dramático, em que se encerra o acontecimento narrado,
assume um caráter revelador, ou seja, torna-se um momento especial concebido
enquanto epifania.
No entanto, em contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso dos contos de Clarice Lispector. Aliás, não só dos seus contos, mas de toda a sua narrativa. [GOTLIB, 1988, p. 52]
2.
Das contribuições teóricas de Edgar A. Poe, Julio
Cortázar, Ricardo Piglia e James Joyce
Em síntese, a teoria de Edgar Allan Poe[10]
é estabelecida a partir do pressuposto da relação entre a extensão do conto e
da reação provocada no leitor mediante sua leitura. O contista americano considerava
que uma produção literária causaria um estado de “excitação” ou “exaltação da
alma”. Assim, a manutenção desse estado estaria submetida a uma espécie de
dosagem da obra pelo autor. Com efeito, um texto longo demais, ou muito curto,
implicaria num tipo de arrefecimento do estado excitação do leitor. E,
portanto, a unidade de efeito tornar-se-ia resultante de uma leitura que
pudesse ser realizada de uma só vez. Segundo Poe, o autor deve ter total
controle dos recursos narrativos para dominar a técnica do suspense diante de
um enigma. O domínio da técnica é, sem dúvida, um trabalho consciente.
Para Cortázar (1993, p. 122), “um conto é uma verdadeira
máquina de criar interesse”. Assim, em toda a composição não pode haver nenhuma
palavra que não esteja a serviço desse desígnio, conclui o contista argentino
em sua análise acerca da produção literária de Poe (CORTÁZAR, 1993). Em seu
artigo, “Poe: o poeta, o narrador e o crítico”, Cortázar (1993, pp. 103-146)
estabelece uma relação entre cinema-romance-fotografia-conto. Segundo escritor argentino, "o
romance está para o cinema - enquanto a fotografia, para o conto". Por analogia,
romance e cinema captam a realidade por meio de um processo cumulativo no
desenvolvimento da narrativa. Já o conto e a fotografia são projetados tendo em
vista a seleção significativa do real. Para J. Cortázar (1993):
Um conto é significativo quando quebra seus
próprios limites com essa explosão de energia virtual que ilumina bruscamente
algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta. (CORTÁZAR, 1993, p. 153).
É justamente essa “energia
vital”, citada em Cortázar, que nos explica a relação entre a fotografia e o
conto. Se na fotografia a imagem deve ser significativa e, com efeito, aguçar
em um espectador sua sensibilidade e inteligência, essa energia é também responsável
por tornar significativo para um leitor o texto. A energia vital corresponde ao
que denominamos intensidade. Dosada pelo
autor - em níveis de tensão - um leitor irá aproximar-se ou distanciar-se dos
acontecimentos narrados, conforme a habilidade do autor em estimular-lhe o
desejo de conhecer o desenlace da estória construída de maneira intencional e intensiva.
A imagem criada por Cortázar para representação do conto é a de uma “bolha de
sabão que se desprende do autor, do seu pito de gesso” (apud GOTLIB, 1988,
P.69). Essa concepção indica ser o conto uma “forma fechada e tensa” e,
portanto, apresenta concordância com os princípios defendidos por Edgar A. Poe[11],
em “ A filosofia da composição”. Não obstante, a tensão (intensidade que se
exerce no modo como o autor aproxima o leitor daquilo que é contado) é um
recurso presente no conto A solução.
Nele, Clarice Lispector faz com que o leitor competente afaste a importância
imediata do fato em si (a personagem Almira golpeia sua amiga Alice com um
garfo) e, a partir daí, procure esmiuçar as sutilezas anteriormente narradas.
Em Formas Breves[12],
Ricardo Piglia (2004)[13]
fala sobre os dois pilares de seu pensamento: “um conto sempre conta duas
histórias” e “a história secreta é a chave da forma do conto e de suas
variantes”. Retomando a “teoria do iceberg”[14]
de Hemingway, Piglia declara que esta é a primeira síntese do processo de construção de
uma narrativa curta.
A
história secreta é contada de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à
Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas
histórias como se fossem uma só. A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira
síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A
história é construída com o não-dito, com o subentendido e a alusão. (PIGLIA,
2004, p. 41)
Em Clarice: uma
vida que se conta, Gotlib (2011, p. 328) identifica diversos traços comuns
na obra da escritora modernista. Os temas abordam o cotidiano de forma
excepcional e nem sempre compreensíveis. A pesquisadora declara que, embora
haja uma “aparente estrutura clássica” nos contos de Clarice Lispector, de modo
geral, esse tipo de organização estética não é:
(...)
suficiente para explicitar a sua construção, já que junto a esta, aparente,
coexiste outra, mais subterrânea, que praticamente questiona e desmonta a
primeira, sob o disfarce de outros elementos de composição, que instauram a
desordem, o desequilíbrio, o caos. (GOTLIB, 2011, p.328)
Piglia (2004), ao descrever seus princípios teóricos e,
também, ao mencionar o pensamento do autor estadunidense, acaba revelando um
aspecto substancial da produção artística de Clarice Lispector, identificado
nas investigações de Gotlib (2011). Em outros termos, podemos dizer, aqui,
tratar-se de um feliz diálogo interdiscursivo, no qual, a práxis literária de um contista assume um lugar relevante na
chamada teoria do conto – enquanto
objeto de estudo estético-filosófico. Sem dúvida, é possível ampliar essa reflexão,
até mesmo porque tais considerações abrangem outros gêneros discursivos de
caráter narrativo como, por exemplo, os microcontos contemporâneos. Essa
ampliação do escopo da discussão pressupõe, contudo, uma teoria geral da
narrativa que não nos caberia tratar aqui.
Todavia, o aspecto
filosófico e estético da narrativa, de modo geral, pode ser analisado por meio
do conceito de epifania. James Joyce, em Stephen Hero, a define como sendo uma
“manifestação espiritual súbita”. De
acordo com J. Joyce, a epifania é um atributo da beleza do objeto. O belo
manifesta-se através da integridade, da simetria e da epifania (a coisa tornada
ela mesma). Para Gotlib, o conceito não faz parte necessariamente do conto, mas
enseja a teoria na medida em que nesse gênero o conflito dramático (núcleo) é
revelador de uma determinada realidade. Em “A Solução”, a violência é
reveladora de um estado passional caótico vivido pela personagem protagonista
(Almira). É o momento em que “sua alma desprende, diante de nós, do
revestimento da aparência”[15].
3. Enigmas e soluções da narrativa de Clarice
Lispector: aspectos metodológicos
Dentre a vasta produção textual de Clarice Lispector, procuraremos
analisar, especificamente, o processo de construção literária do conto
denominado A Solução, numa perspectiva
investigativa fundamentada em procedimentos metodológicos recorrentes, sobretudo,
no campo da Teoria da Literatura e Análise do Discurso. Segue-se, portanto, uma descrição acerca das condições de
produção, elementos da narrativa, linguagem e estilo do texto para, enfim, com
base nessas observações, discutirmos o propósito comunicacional subentendido.
3.1.
Uma legião de estrangeiros: temas, conflitos e soluções
Clarice Lispector
(1920-1977) é considerada uma das maiores escritoras da literatura brasileira
moderna. A crítica elaborada em torno de sua obra tende a considerar os
aspectos mais singulares da sua criação artística consolidada: análise
psicológica, monólogo interior, gosto pelo singular e universal. Essas
características estão presentes em boa parte do discurso clariceano. Em 1964, Clarice Lispector publicou o livro
de contos A Legião Estrangeira que, segundo a própria autora, “(...) foi
inteiramente abafado pela A Paixão segundo G.H., que saiu na ocasião”[16].
Apesar da falta de repercussão, o livro apresenta contos excepcionais, tais
como “A Legião Estrangeira”, “Os Desastres de Sofia” e “A solução”.
Em “A Solução”, o tema é o
amor homossexual. O narrador heterodiegético conta a estória de amor e ódio
entre duas moças: Almira e Alice. Já no primeiro enunciado do texto, Almira é
caracterizada fisicamente: “Chamava-se
Almira e engordara demais”. Em contrapartida, a personagem Alice nos é
descrita como delicada e pensativa (“Alice
era pensativa e sorria sem ouvi-la...”). Chama-nos a atenção, um traço
psicológico assinalado no texto acerca da avidez da personagem Almira e que
destoa, portanto, do comportamento de sua amiga, pois esta, no contexto
narrado, atua com uma postura distanciada de uma reciprocidade em mesmo grau de
intensidade (“Por que Alice tolerava
Almira, ninguém entendia”).
Segundo Erich Fromm[17],
“a avidez é sempre o resultado de um vazio interior”. Esse vazio corresponde a
uma sensação de incompletude da vida, ou seja, retomando o plano da narrativa,
Almira é construída enquanto personagem num paradoxo enigmático: sua forma
corpórea exterior plena (gorda, pesadona) esconde o vazio interior do ser que
busca locupletar-se pela paixão. Nesse contexto, o objeto de desejo de Almira é
Alice. A completude de sua vida interior está submetida à existência da outra.
Eis o princípio do conflito dramático sutilmente narrado no conto, pois a
simples existência não basta. Almira, contudo, desejava que sua devoção amorosa
fosse retribuída na forma mais singela de fidelidade ou na mesma intensidade de
desejo que sentia pela “comida, seu contato mais direto com o mundo”.
A tensão proporcionada ao
longo da narrativa é meticulosamente dosada pela autora em razão da concisão e
unidade do discurso produzido. Períodos curtos utilizados na informação dos
acontecimentos dão conta apenas em parte daquilo que é dito. Clarice parece
sugerir ao leitor que ele deve esmiuçar o enredo para encontrar o sentido
verdadeiro das ações narradas. É o caso, por exemplo, do seguinte parágrafo:
Só a
natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma
noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate
podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O
que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter
feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo. Na manhã
do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando
um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não
a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem
respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina. (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira.
Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)
O que teria acontecido de
fato naquela manhã? Por que Alice voltou ao trabalho uma hora depois e chorando
(“olhos vermelhos”)? Por que Alice não quis explicar-se? E a natureza de Almira,
era realmente delicada? Esses questionamentos são colocados na ponta do iceberg. E, certamente, estão
vislumbrados num conjunto de estratégias pensado por Clarice Lispector em seu
processo de criação artístico-literário. Seguramente, tais condições
estabelecem outro tipo de movimento instaurado no interior da narrativa, isto
é, um movimento que possibilita a revelação do objeto temático em si. Com
efeito, a epifania do conto desvelará a verdadeira natureza de Almira e sua
relação com a amiga Alice.
São duas histórias paralelas:
a) a amizade entre duas datilógrafas; b) a relação passional entre duas
mulheres. Na primeira narrativa – na chamada estória evidente, o leitor é
levado a acreditar no relacionamento baseado em um tipo de amor denominado
pelos antigos gregos de filía (termo
philia, geralmente, traduzido por “amizade”). No entanto, na outra estória narrada, melhor dizendo na estória secreta, o sentido mais profundo
é melhor compreendido por meio da palavra grega aphrodisia[18]
– usada para designar as relações amorosas. Almira se completa avidamente na
junção carnal. E seu amor por Alice transforma-se em ódio no instante em que
esta declara:
—
Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que
houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para
Porto Alegre e não vai mais voltar! Agora está contente, sua gorda? (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira.
Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)
Essa revelação conduz o
leitor para o momento decisivo do enredo (clímax), no qual, também, se atinge o ponto máximo da tensão (conflito) e,
pois, traz a solução do conto. Seguindo o padrão clássico,
Clarice Lispector apresenta sua narrativa numa ordem linear. O tempo é marcado
cronologicamente. E, “exatamente durante o almoço”, a protagonista Almira
“(...) como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice”.
O desfecho do texto apresenta um lado tragicômico, sem dúvida. Alice é levada a
um pronto-socorro e Almira é presa em flagrante. Assim, declara-nos o narrador,
em seu epílogo:
Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria,
talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras.
Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito
bem com as guardiãs, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate.
Exatamente como para um elefante no circo. (LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964)
Para além das questões
estético-literárias envolvidas no processo de construção do conto clariceano,
expostas acima, cabe-nos assinalar a coragem da autora em
abordar o tema da relação homoafetiva em um momento tão obscuro da história brasileira
(início do Regime Militar), fortemente marcado pelo conservadorismo moral.
Considerações finais
O conto literário é um
gênero discursivo baseado em um modo de narrar um acontecimento representado,
mediante unidade de efeito, a partir de uma realidade verdadeira ou mesmo
inventada, isto é, como pura ficção.
Como escrita moderna, ganha espaço na vida social, graças sobretudo ao
advento da imprensa e sua divulgação junto a um público leitor formado no
período pós-Revolução Industrial.
Com efeito, novas exigências
eram feitas por esse público ávido em descobrir o mundo das letras. Sem dúvida,
as novas relações de trabalho do mundo moderno fizeram com que o perfil desse
leitor mudasse. A leitura de um romance demandava tempo. E, portanto,
diferentes formas literárias precisariam, por assim dizer, atender ao gosto e a
necessidade do homem moderno e burguês.
O conto aparece como uma resposta
a essa urgência dos sujeitos históricos em apreender a beleza estética da
literatura e das artes. À medida que os autores se apropriavam das técnicas de
composição de um conto, as propostas de análise literária (do que antes era um gênero
relativamente novo) foram assumindo um caráter teórico muito mais aprofundado.
Os séculos XIX e XX conheceram nomes de peso no campo da teoria do conto: Edgar
A. Poe, Julio Cortázar, James Joyce, Ricardo Piglia, entre outros tantos, que
procuraram estabelecer princípios estéticos e literários a fim de explicar a
essência da arte de escrever narrativas curtas/breves.
O discurso produzido nesse
gênero tem a ver com a necessidade de o ser social captar o instante da vida.
Compreender a sua própria natureza é um desejo atávico do homem. A arte surge
necessariamente dessa vontade de contemplação de si e do mundo. A impossibilidade de fruir a totalidade do
cosmos fez com que o homem buscasse fragmentar a realidade por meio de sua
capacidade criadora e inventiva. As partes componentes do universo estariam
assim representadas pela música, pela pintura, pela literatura, pela dança, pelo
teatro, entre outras manifestações artísticas. Em tudo, porém, há o efêmero, o
fugaz, o instante, pois o ser humano não é eterno.
É nesse contexto que a obra
de Clarice Lispector ganha energia vital. Se aquilo que é aparente e material foge
do alcance da percepção total dos sentidos, resta-lhe a sua interioridade na
qual o vazio interior só poderá locupletar-se daquilo que é sensível, paradoxal
e misterioso: a alma é o universo do conto clariceano percebido no todo. Almira e Alice correspondem, no mesmo
instante, à alma e ao corpo humanos e consubstanciados. O desejo é a dor. O
amor é a linha fronteiriça entre a solidão e o desespero de não existirmos para
o outro e no outro. É isso que Clarice Lispector nos ensina em sua narrativa:
no fundo, somos todos uma epifania em busca da felicidade e do amor. E,
provavelmente, muitos de nós já procuramos ser elefantes num circo.
Referências bibliográficas
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Disponível em: < http://www.poscritica.uneb.br/wp-content/uploads/2014/08/piglia-ricardo-formas-breves.pdf>.
Acesso em: jan. 2017.
[1] Mestre em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/Três Lagoas).
[2]
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do
Conto. São Paulo: Ática, 1988, p. 07.
[3]
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice – uma vida que se conta – 6. ed. rev. e aum. 1. reimpr. São Paulo, 2011, p. 329.
[4]
GOTLIB, Nádia Battella. “Um fio de voz:
histórias de Clarice”. In: LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Edição
crítica.Coord. Benedito Nunes. Paris; Brasília: Association Archives de la
Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Africaine du XXème Siècle/CNPq,
1988, p. 161-195. (Ver: p.176).
[5]
Nádia Battella Gotlib possui graduação em Letras pela Universidade de Brasília
(1967), mestrado (1971) e doutorado (1977) em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e livre-docência em Literatura Brasileira pela
Universidade de São Paulo (1993), onde atuou como professora de Literatura
Portuguesa (desde 1973), de Literatura Brasileira (de 1979 até 1997, quando se
aposentou.). Desenvolveu atividades de pesquisa e ministrou cursos de Graduação
e de Pós-Graduação em várias universidades brasileiras e do exterior (Univ. de
Oxford, Univ. de Buenos Aires). Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura Brasileira Contemporânea e principalmente nos seguintes temas:
conto brasileiro, narrativa de Clarice Lispector, arquivo pessoal, diários,
epistolografia e autobiografia. Atualmente está vinculada, como professor
colaborador, ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas
de Língua Portuguesa da USP. É Bolsista Sênior do CNPq. (Disponível em: <https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLattesMostrar?codpub=F7A0AC30EC9F>. Acesso: 13 jan. 2017) .
[6] Julio Florencio Cortázar (1914 – 1984) foi um escritor argentino.
É considerado um dos autores mais inovadores e originais de seu tempo, mestre
do conto curto
e da prosa poética, comparável a Jorge Luis
Borges e Edgar Allan
Poe. Foi o criador de novelas que inauguraram uma nova forma de
fazer literatura na América Latina, rompendo os moldes clássicos mediante
narrações que escapam da linearidade temporal e onde os personagens adquirem
autonomia e profundidade psicológica inéditas. WIKIPÉDIA. Júlio Cortázar. Disponível em:
. Acesso em: 10 jan. 2017
[7] Edgar Allan Poe (1809 — 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante
do movimento
romântico estadunidense. A escrita de Poe reflete suas
teorias literárias, que ele apresentou em sua crítica e também em peças
literárias como "The Poetic Principle". Acreditava que os significados na
literatura deveriam ser uma subcorrente sob a superfície. Segundo E. A. Poe, o trabalho de qualidade
deveria ser breve e concentrar-se em um efeito específico e único. Assim,
acreditava que o escritor deveria calcular cuidadosamente todos sentimentos e
ideias. WIKIPÉDIA. Edgar Allan
Poe. Disponível em:
. Acesso em: 10 jan. 2017.
[8]
Ibid. , p. 12
[9]
O conto é compreendido, aqui, conforme os estudos de Cortázar sobre o
significado da palavra.
[10]
Ver:
Prefácio à reedição da obra Twice-told
tales, de Hawthorne, em texto denominado “Review of Twice-told tales”
(1842), conforme citado por GOTLIB, 1988, p. 32.
[11] Para Rosana Gondim Rezende (In: A teoria do
conto de Edgar Allan Poe e de Ricardo Piglia na análise de “A caçada”, de Lygia
Fagundes Telles. Revista Alpha. Patos de Minas: Unipam, Patos de
Minas, p.208-219, dez. 2009.), em “A filosofia da composição”, Edgar A. Poe
argumenta em favor da tese de que os espaços fechados são dotados de força
moral e que atuam na manutenção da atenção concentrada. A autora cita o
discurso de Poe, em sua análise:
(...), mas sempre me pareceu que uma ‘circunscrição fechada do espaço’ é
absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de
uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral, para conservar
concentrada a atenção... (POE, 1986, p. 68).
[12]
Nessa obra, Piglia reflete sobre autores da literatura argentina, como
Macedonio Fernández, Jorge Luis Borges e Roberto Arlt, sobre clássicos da
modernidade como Joyce, Kafka e Gombrowicz, sobre as relações entre literatura
e psicanálise, e sobre a natureza do conto, tema ao qual volta, com o ensaio
'Novas teses sobre o conto', depois de abordá-lo em 'Teses sobre o conto',
publicado em O laboratório do escritor (Iluminuras, 1994). Piglia faz uma
reflexão sobre o fazer literário ligada à sua experiência pessoal.
[13] Disponível em: < http://www.poscritica.uneb.br/wp-content/uploads/2014/08/piglia-ricardo-formas-breves.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
[14]
O conceito da teoria do iceberg
é muitas vezes referido como a "teoria da omissão."
[15]
Ver Stephen Hero, de James Joyce.
[16]
Clarice Lispector, Entrevista, MIS-RJ, 20 out. 1976.
[17]
Erich Fromm (1900 -1980) foi um psicanalista alemão, filósofo e sociólogo.
[18]
Aphrodisia, "o que está sob domínio de Afrodite".
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