Uma questão de ensino de qualidade: escola e democracia
Edemir Fernandes Bagon
A democracia, como meio para a
construção da liberdade em sua dimensão histórica, faz parte de uma herança
cultural. Entendida como processo vivo que perpassa toda a vida dos indivíduos,
laborando na confluência entre o ser humano singular e sua necessária
pluralidade social, ela se mostra fundamental tanto para o desenvolvimento
pessoal e formação da personalidade individual, quanto para a convivência entre
grupos e pessoas e a solução dos problemas sociais, colocando-se, portanto,
como componente incontestável de uma educação de qualidade.
Para Norberto Bobbio*, a apatia
política compromete o futuro da democracia – incluindo até mesmo as nações mais
desenvolvidas. O autor reafirma a tese de Stuart Mill, segundo a qual a
educação deve formar cidadãos ativos, participantes e capazes de julgar e
escolher. John Dewey** afirmava que uma sociedade democrática não requeria
apenas o governo da maioria, mas a possibilidade de desenvolver, em todos os
seus membros, a capacidade de pensar, participar na elaboração e aplicação das
políticas públicas e julgar os resultados. Na visão de Maria Victória
Benevides*** [2004], Dewey “estava falando, sem dúvida, em educação para a
cidadania”.
A concepção atribuída pelos
antigos gregos ao vocábulo democracia apresentava forte conotação política e,
portanto estava ligada à formação do caráter do homem grego. Ou seja, a
participação da vida pública na pólis exigia uma virtù compreendida nos
domínios de uma paidéia. Em outros termos, política e educação estavam
determinadas pelo caráter social do homem. Em última análise, significava a
busca pelo Bem Comum, a Justa Medida, a Razão como princípio das ações, o Belo
e o Verdadeiro enquanto finalidade da existência do pensamento e da prática da
vida cotidiana.
As questões fundamentais dos
antigos perpassaram pela cosmogonia e também pela cosmologia. Por conseguinte,
o legado resultante dessa busca investigativa e reflexiva contribui para o
estabelecimento de alguns dos princípios determinantes da filosofia medieval e
moderna. O homem do medievo, não obstante a suas aspirações
metafísico-religiosas, também não deixara de lado a procura por formas de
organização do poder político no plano secular. Isso, sem dúvida, contribuiu
para concepção de um modelo educacional vinculado à Escolástica [Trivium e
Quadrivium] e à Moral Cristã.
Do ponto de vista da modernidade,
o debate filosófico mais acirrado recaiu sobre a distinção clara e absoluta
entre aquilo que pertencia à esfera pública e à privada, ou seja, uma noção
básica da dicotomia entre o que era Estado e o que era indivíduo - Soberano e
súdito / Governo e cidadão. Houve na Filosofia das Luzes o forte desejo de se
combater a prepotência e a opressão do poder despótico que exigia dos súditos
apenas deveres e nada de direitos. A exigência desse período era libertar-se do
“Crer, Obedecer, Combater”. Surgia assim a tese de um Estado ético, que, como
tal, superior aos indivíduos. De acordo com Bento Prado Jr., em A Retórica de
Rousseau [p.111]:
A ideia da perfectibilidade das línguas é suficiente para apagar a oposição entre os partidários e os adversários da língua universal – e, mesmo não se acreditando na possibilidade do projeto de Leibniz, a ciência terá sempre algo de uma língua bem-feita. Essa bela continuidade, esse otimismo linguístico que faz da linguagem o espelho impassível em que veem refletirem-se, sem conflito, coisas inocentes, prolonga-se além do campo da Gramática e da Lógica: na própria ideia de uma “Filosofia das Luzes”, no engajamento dos “Filósofos”, esse otimismo torna-se político. A Gramática e a política dos Filósofos amparam-se mutuamente: a livre circulação das palavras, este sopro muito leve da verdade, pode neutralizar a violência das coisas, instaurar o universo da liberdade.
Por meio das categorias como a
linguagem (perfectibilidade das línguas), o pensamento (ciência), a gramática
(ensino) e a política (sociedade) – o projeto moderno filosófico estruturava-se
num telos cujo modelo “empirista” ou “racionalista” do conhecimento tornava-se
a gênese da estrutura do entendimento. Nesse sentido, a educação passava a ser
vista como instrumento a ser usado pelo Estado e não apenas pela fé
necessariamente, como se revelou, e.g., na querela entre os padres jesuítas e o
Marquês de Pombal - no Brasil, do século XVIII.
A educação ganha nova dimensão
com a mudança de ênfase no sujeito do processo educativo. Num momento em que os
pensadores priorizavam a objetividade, Rousseau pensa, voluntariamente, num
plano mais subjetivo da educação. Constrói uma nova concepção de educação, não
mais baseada no domínio de livros e de fórmulas, mas a partir da construção do
conhecimento pelo próprio educando. Com ele, instaura-se uma nova maneira de
pensar o homem, reconhecendo-lhe a capacidade de dirigir o seu próprio eu,
firmar sua liberdade, sua identidade.
Rousseau reconheceu a educação
como um direito nato e a infância como uma fase dotada de características
próprias. Ele deu impulso à ideia, que muitos não conseguiram exprimir, de ser
a educação um direito universal. O sujeito, para ele, não é dado imediatamente,
de modo atemporal e anistórico, mas é constituído gradual e progressivamente,
num longo processo de subjetivação, que se estende da criança ao homem adulto.
Rousseau aponta a educação como a
grande possibilidade do fazer-se homem, a fim de libertá-lo dos artificialismos
impostos pela sociedade. Somente ela é condição de liberdade e igualdade entre
os homens; de afirmação da pessoa humana como sujeito. A educação proposta por
Rousseau é a da liberdade ou da natureza. A educação ensina o homem a viver.
O ignorante, que nada prevê, mal sente o valor da vida e tem pouco medo de perdê-la; o homem esclarecido enxerga bens de maior valor, que prefere àqueles [Rousseau, 1999: 72].
O homem não deverá ser educado
apenas para si mesmo, mas para viver em comunhão com seus semelhantes. Seu
objetivo deverá ser o de suprimir, a um só tempo, as contradições do homem em
sociedade e o obstáculo à sua felicidade, cuja condição básica é a liberdade.
No Emílio, Rousseau expõe o objetivo da educação ao expressar que:
Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser, ele será capaz de ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro; e ainda que a fortuna o faça mudar de lugar, ele sempre estará no seu. [Rousseau, 1999: 14].
A grande preocupação de Rousseau
era formar o homem íntegro, virtuoso, aquele que melhor pode suportar os bens e
os males da vida. O ponto chave do pensamento do filósofo genebrino foi seu
entendimento acerca da educação enquanto direito subjetivo e universal. Esse
fator permite o entrelaçamento do conceito democrático político-social herdado
com valores concebidos pelo liberalismo e democracia modernos como a liberdade
para a participação na vida pública, as liberdades civis, a igualdade e a
solidariedade, a alternância e a transparência no poder, o respeito à
diversidade e a tolerância.
Para Maria Victoria Benevides, a
democracia é o regime político fundado na soberania popular e no respeito
integral aos direitos humanos. Assim, entendida como direito subjetivo e
universal – a educação deve ser garantida pelo poder político fundado pela vontade
dos homens que anseiam a liberdade com responsabilidade. Logo, aprender
torna-se imperativo de ser, de viver, de conviver, de comunicar, de existir e
de compartilhar o Bem, a Ética, o Amor, a Igualdade e a Justiça. Em suma, o
viver em comunidade, isto é, viver o Belo, o Bom e o Verdadeiro.
É por essa razão que a qualidade
de ensino assumiu papel social relevante no mundo contemporâneo. Por sua vez, a
dimensão social liga-se à formação do cidadão tendo em vista sua contribuição
para a sociedade, de modo que sua atuação concorra para a construção de uma
ordem social mais adequada à realização do “viver bem” de todos, ou seja, para
a realização da liberdade enquanto construção social. Assim, a expressão
qualidade de ensino não deve ser compreendida enquanto resultado de um processo
de caráter “técnico-pedagógico” aferido por uma menção ou nota como o foi num
passado recente no país.
A verdadeira educação, de
qualidade para todos, não é aquela que contempla a formação de uma minoria
pretensamente predestinada a chefiar e a governar como nas palavras do senador
Oliveira Junqueira, em 1879: "certas matérias, talvez, não sejam
convenientes para o pobre; o menino pobre deve ter noções muito simples”;
trata-se de uma educação na qual a democracia é um componente da qualidade do
ensino. Segundo Vitor Henrique Paro [p. 07, março/2000], em texto intitulado Educação
para a Democracia – o elemento que falta na discussão da qualidade do ensino:
Este aspecto é tão mais importante quanto mais menosprezado ele seja no contexto das questões educacionais. A própria população, ao procurar a escola, porque guiada basicamente por seus interesses imediatos, tem em mira fins individuais. Mas, como os indivíduos não podem prescindir da vida em sociedade, não é possível conceber uma educação pública de qualidade sem levar em conta os fins sociais da escola, o que significa, em última análise, educar para a democracia, tendo presente o sentido em que estamos empregando este termo.
A partir dessas considerações,
podemos concluir que o discurso sobre a qualidade deve ser interpretado sob a ótica
da democracia enquanto um direito à educação. Isso nos faz supor que, em uma sociedade
plenamente democrática, não pode haver contradição entre o acesso à escola e o
tipo de serviço por ela prestado. Desse modo, não há democratização sem
igualdade no acesso, bem como não haverá democracia sem igualdade na qualidade
recebida por todos os cidadãos. De acordo com Pablo A. A. Gentili, a escola
pública é o espaço onde se exercita esse direito, não o mercado no qual a
educação e a qualidade de ensino se tornam uma “mercadoria vendida ao que der a
melhor oferta”.
O desafio é construir uma sociedade em que
todos possam gozar do direito a uma educação radicalmente democrática. Aprender
a aprender, aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conviver são pilares
de uma educação voltada para as liberdades subjetivas, históricas e políticas.
Sem dúvida, a democracia será favorecida por um ensino de qualidade na medida em
que este for pautado na ética, no respeito à diversidade político-ideológica,
na valorização da vida humana e nas suas diferentes formas de existência.
Bibliografia
BELO, José L. da Silva. História
da Educação no Brasil. Rio de Janeiro, home Page, 1998.
BENEVIDES, M. V.. Educação para a
democracia. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, v. 38, p. 223-237, 2004.
PEREIRA, Rosilene de O. et
PEREIRA, Regina C. B. A gestão democrática do Conhecimento, segundo Jean –
Jacques Rousseau: Fundamentos Educacionais e Antropológicos - site: www.ufjf. / defesa
PRADO, B. A Retórica de Rousseau.
Ed. Cosacnaify, São Paulo, p.111, 2008.
ROSSEAU, J – J. Emílio ou da
Educação. (Tradução de Roberto Leal Ferreira). 2ª ed., São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
___________________________
* Norberto Bobbio [1909-2004],
filósofo político, historiador do pensamento político e senador vitalício
italiano. Autor da obra Dicionário de Política – escreveu ao lado de Nicola
Matteucci e Gianfranco Pasquino – publicada em dois volumes.
** John Dewey [1859-1952],
filósofo e pedagogo norte-americano. Um dos fundadores da escola filosófica do
Pragmatismo.
*** Maria Victoria de M.
Benevides Soares [1942] é socióloga e professora titular da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP).
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