O discurso semiótico na poesia de Ferreira Gullar: traduções possíveis
Edemir Fernandes Bagon (PROFLETRAS/CPTL/UFMS)
Introdução
Ferreira
Gullar é um importante autor brasileiro dotado de inúmeros talentos literários.
Crítico, biógrafo, tradutor, ensaísta e memorialista, foi sobretudo na poesia
que suas habilidades escritoras se tornaram conhecidas. Ocupante da cadeira 37
da Academia Brasileira de Letras (posse em 5 de dezembro de 2014), produziu no
campo da poesia: Um pouco acima do chão – 1949; A Luta Corporal – 1954; Poemas
– 1958; João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer (cordel) – 1962; Quem Matou
Aparecida? (Cordel) – 1962; A Luta Corporal e Novos Poemas – 1966; Por você,
por Mim – 1968; Dentro da Noite Veloz – 1975; Poema Sujo – 1976; Na Vertigem do
Dia – 1980, entre outras.
Nascido
em São Luís do Maranhão (1930), aos 19 anos conheceu a poesia moderna por meio
dos textos escritos de Carlos Drummond de Andrade. Logo passou a ser um
sectário da arte modernista. Posteriormente
aderiu à tendência concretista e, no entanto, como dissidente daquele
movimento, passou a integrar o grupo dos chamados neoconcretistas – formado por
artistas plásticos e poetas do Rio de Janeiro, tais como Lygia Clark e Hélio
Oiticica. O neoconcretismo surge em 1959, com a divulgação do manifesto escrito
por Ferreira Gullar, seguido da Teoria do
não-objeto.
Por
ocasião do lançamento de A Luta Corporal
(1954), marcada pela mentalidade concretista, Ferreira Gullar afirmou ser um
desejo dele que “ a linguagem fosse inventada a cada poema”. Com efeito, suas
experiências poéticas foram levadas ao limite da expressão, criando o livro-poema e,
depois, o poema espacial, e, finalmente, o poema enterrado[1].
O poema enterrado foi a última obra neoconcreta de Gullar, que
se afastou então do grupo e integrou-se na luta política revolucionária[2]. O engajamento político
provocou sua prisão durante a ditadura militar instaurada no país, em
1964. No exílio, foi para Moscou,
Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires – onde escreveu Poema Sujo. Em 1977, foi preso e torturado. Sua libertação deveu-se
à pressão internacional. Em 1980, publicou Na
Vertigem do Dia e, também, uma coletânea de todos os seus escritos, até
aquele momento, denominada Toda Poesia.
Em
Na Vertigem do Dia (1980), encontramos
o poema “Traduzir-se”. Segundo Sandro Adriano Silva[3] (2013), em artigo
intitulado Demandas do Presente:
“Traduzir-se”, de Ferreira Gullar[4]
No poema de Gullar, o
mote da tradução elabora um conjunto metafórico: o título reivindica uma
hermenêutica de si. Hermēneuein 3 significa "declarar", "anunciar”,
“interpretar", "esclarecer" e, por último, "traduzir".
“Traduzir-se” - o uso da partícula “se”, funciona como uma licença
poético-gramatical (incorpora um caráter reflexivo) - denota um debruçar sobre
si, ato, portanto, de auscultamento do ser, de um encontro consigo mesmo,
fundante de uma experiência de transcendência com/na palavra
matéria-prima da poesia e do conhecimento (...).
Não
obstante, podemos considerar o poema “Traduzir-se” como metáfora de exploração
de algumas dicotomias que, conforme Silva (2013), “espraiam essa experiência,
sobretudo os liames sugeridos entre consciente/inconsciente,
racional/irracional, expressão/comunicação, propostos no texto, e que nele
propõem um enigma caro à arte e à vida e a sua “tradução”.
Nesse
sentido, propomos uma análise de natureza semiótica em que sejam vislumbrados os
níveis de leitura do texto – fundamental, narrativo e discursivo – a fim de
compreender seus efeitos de sentido, figuras e temas, bem como os papéis do
destinador/destinatário. Para tanto, faremos a segmentação do texto, proposta
na teoria de Greimas, e, também, o uso de um quadro semiótico para verificação
dos elementos de significação mais relevantes do poema.
1.
Análise
do Nível Fundamental
Segue abaixo o texto Traduzir-se[5],
de Ferreira Gullar.
Traduzir-se
1 Uma
parte de mim
2 é
todo mundo:
3 outra
parte é ninguém:
4 fundo
sem fundo.
5 Uma
parte de mim
6 é
multidão:
7 outra
parte estranheza
8 e
solidão.
9 Uma
parte de mim
10 pesa,
pondera:
11 outra
parte
12 delira.
13 Uma
parte de mim
14 almoça
e janta:
15 outra
parte
16 se
espanta.
17 Uma
parte de mim
18 é
permanente:
19 outra
parte
20 se
sabe de repente.
21 Uma
parte de mim
22 é
só vertigem:
23 outra
parte,
24 linguagem.
25 Traduzir
uma parte
26 na
outra parte
27 —
que é uma questão
28 de
vida ou morte —
29 será arte?
29 será arte?
- De Na Vertigem do Dia (1975-1980)
Traduzir-se pode
ser segmentado em duas partes
significativas que correspondem as duas estrofes constitutivas do poema. A 1.ª
parte, portanto, definida pelos 12 versos iniciais (versos: 1 a 12). A 2.ª
parte é constituída pelos 17 versos finais (versos: 13 a 29)[6]. Em ambos os segmentos, o
eu-lírico afirma uma existência ontológica dividida entre consciência/inconsciência,
racionalidade/irracionalidade, expressão/comunicação.
Na
primeira parte, porém, o poeta busca o lugar do eu no mundo ao declarar-se pleno, em parte, na sua existência
(“Uma parte de mim/ é todo mundo”), mas que se descobre (eu-lírico),
paradoxalmente, não ser “ninguém” em sua própria totalidade. Notadamente, a
expressão “uma parte de mim” é reiterada ao longo do texto. A isso se explica a
necessidade do eu-poético revelar-se em oposições contundentes.
Ou
seja, o instinto versus intuição perceptiva acerca da realidade
do mundo reverbera na condição humana submetida à contingência da própria vida.
Logo, o poeta afirma que “uma parte de mim/ é permanente:/ a outra parte se
espanta” (versos 17-20), pois o que caracteriza o humano é o desconhecimento do
vir a ser, do transformar-se em, ao
longo do tempo na própria existência.
Decorre
daí a oposição entre vertigem e linguagem apresentada no poema de
Gullar. A sensação de um mundo em constante transformação, num movimento
oscilatório causador da vertigem, implica a urgência de uma explicação ou
interpretação linguística das coisas em si. Ou seja, a linguagem atua como
mecanismo de expressão essencial para dar sentido à vida. E, por essa razão, é
preciso traduzir-se em um processo de metalinguagem no qual a vida e a morte estariam luta/oposição perene (“Traduzir uma parte/ na outra
parte/ — que é uma questão/ de vida ou morte”).
Os
aspectos eufóricos e disfóricos, portanto, estão determinados pela concepção de
vida e morte explicitada pelo eu-lírico – sujeito actante do discurso. A vida
compreende as partes que encerram o todo (o ser), e.g.,
sensação-pensamento-linguagem; a morte é, portanto, a ausência da linguagem
visto que o ser só existe por completo à medida que se traduz expressivamente
“(...) uma parte/ na outra parte”.
Assim,
as categorias fundamentais podem ser representadas graficamente pelo chamado
“quadrado semiótico”, que demonstra como no poema se passa de uma a outra
dessas categorias semânticas por meio de uma negação (Greimas; Courtés, 2012,
p. 400-404)[7].
Exemplo (fig. 1):
________________________________________________________
MORTE VIDA
╳
LINGUAGEM AUSÊNCIA de LINGUAGEM
_________________________________________________________
(Fig.1)
2. Análise
do Nível Narrativo
O
sujeito actante apresentado pelo poema é o eu-lírico.
Este busca o objeto-valor (linguagem)
ao longo dos versos e é o responsável pelas construções poéticas reveladas em
todo o discurso. O sujeito que busca o valor estabelece um “contrato
pré-estabelecido” com o chamado destinador – o leitor ideal. Assim, podemos
dizer que o destinador é o público leitor que valoriza euforicamente o discurso
poético apresentado.
A
manipulação é resultante de um discurso retórico-estilístico construído
sobretudo por meio de oxímoros, metonímias e anáforas: “todo mundo/ ninguém”, “fundo
sem fundo/ multidão”, “pesa/pondera”,
“almoça/ janta”, “permanência/ de
repente”, “uma parte de mim”. Para Silva
(2013: 128):
Esse
procedimento estilístico ressoa como demanda de conhecimento e representação.
[...] o poema é concomitantemente descrição e narração de um eu
lírico que intenta “traduzir” sua tentativa de compreensão da transitividade
que marca a dinâmica de referências e integração que o constituem, expressas
pelo jogo metonímico e pelo efeito de oximoros, derivados do nível lexical:
(...).
O recurso anafórico
estabelece um fluxo rítmico ao poema, configurando as concepções que o poeta
elabora sobre arte e estética, e suas implicações no processo de criação do
discurso poético. Desse modo, a manipulação
por meio da sedução é desenvolvida, em Traduzir-se,
mediante a conceituação estética e valoração atribuídas à arte poética (enquanto
construto humano produzido ao longo da vida dos sujeitos históricos) como forma
de o ser pensante existir plenamente. Retomaremos,
aqui, mais uma vez, o pensamento de Silva (2013) acerca dessa problemática:
Sensação obscura de
que, na linguagem poética, há um exercício de procura, de encontro e
desencontro de algo fugidio, que escapa ao racional, “que desmascara o sujeito
humano como fissurado e inacabado” a quem “a atitude estética, segundo ele,
pode nos compensar pelos sofrimentos da existência, mas não pode proteger-nos
deles” (EAGLETON,1993, p. 193,196,). [SILVA, 2013, p.132).
Assim,
a solidão na qual o poeta se encerra em seu processo artístico de criação se
desfaz uma vez que a poesia se materializa e se configura em objeto de arte –
objeto de desejo do leitor, agora, real. Nesse sentido, a busca se completa no
outro que transcende a palavra escrita. A questão fundamental (“será arte? ” – Verso
29) representará a vida, e não a morte, tendo em vista os sentidos produzidos
pela parte do poeta encontrada em “todo mundo”.
3. Análise
do Nível Discursivo
No
plano discursivo, a investigação recai sobre os temas (principais e
secundários) abordados no poema de Ferreira Gullar. Sem dúvida, a função
estética e social da arte está sugerida no questionamento final do corpus poético – “ será arte? ”. Não há
uma resposta para a indagação feita. É como se o sujeito actante (eu-lírico) estabelecesse um diálogo com
o seu destinador transcendental (público
leitor) e quisesse com isso fomentar a dúvida no outro. A relação de
alteridade está necessariamente vinculada a uma imagem figurativizada nos
chamados diálogos platônicos.
O filósofo Platão elaborava seus discursos com
base na aporia (questionamentos). Com efeito, os diálogos platônicos não
apresentavam respostas prontas e acabadas como a um oráculo. A dúvida, portanto, é o princípio gerativo da
busca pelo conhecimento. Conhecer-se a si mesmo e o outro só se torna possível
por meio da metalinguagem acerca da estesia do mundo.
Dessa
forma, o eu psicologizante é
fragmentado em partes, que ora se traduz na plenitude, ora se traduz no vazio
(“vazio sem fundo”). O estranhamento a que se refere o eu-lírico (“estranheza”- verso
7) remonta a uma característica da modernidade apontada por Silva (2013: 130):
Nesse sentido,
“Traduzir-se” reverbera um diálogo com a modernidade, na medida em que faz uma
referência à clivagem do eu lírico, à ruptura em si mesmo, de “protesto contra
uma situação social que cada indivíduo experimenta como hostil, estranha,
opressiva”, uma “forma de reação à coisificação do mundo”, (ADORNO, 2003, p.
68,75, 80, grifo nosso), pelo mergulho nele [no poema], descobrindo o
subjacente, o ainda não captado” [...] constituindo, assim, “o paradoxo básico
da lírica – ser subjetividade objetivada” (...).
É
a “ruptura em si mesmo”, o estranhamento do eu-lírico que o permite reconstruir
em sua interioridade aquilo que é Belo,
Bom e Verdadeiro: a Arte. Esta é capaz de produzir no homem o efeito de catarse[8]-
na concepção aristotélica. Por isso, é preciso ponderar a vida, e, nela, ir
descobrindo os sentimentos subjacentes que permeiam a existência humana. Tais
sentimentos só podem ser revelados pela linguagem literária, pois é esta uma
arte escrita que expressa os sentimentos, os valores e a cultura humana. Logo,
o eu-lírico apresentar-se-á em conjunção com o objeto de valor (poesia) à
medida que sua performance (ato de escrever versos) consubstanciar a
forma/conteúdo expressivo no plano da significação profunda produzida na
estranheza das sensações e dos julgamentos estéticos do leitor.
Do
ponto de vista ideológico, Ferreira Gullar apresenta-nos uma linguagem poética,
na qual, de acordo com Silva (2013: 132) ao citar Eagleton (1993, p.193, 196):
(...), há um
exercício de procura, de encontro e desencontro de algo fugidio, que escapa ao
racional, “que desmascara o sujeito humano como fissurado e inacabado” a quem
“a atitude estética, segundo ele, pode nos compensar pelos sofrimentos da
existência, mas não pode proteger-nos deles” .
Essa
linguagem poética desencadeia uma reflexão sobre o papel da literatura no mundo
e seus efeitos de sentido no indivíduo em sociedade. A imagem da vida e da
morte é sobreposta e traduz a essência da existência no cosmos e, por conseguinte, encontra a síntese do sujeito lírico
separado de sua unidade original, porém resultante de seus próprios sentimentos
e pensamentos (estado de espírito). Pela análise, enfim, pode-se perceber que esse
estado de espírito vivenciado pelo escritor, numa “tradução possível”, se transforma numa obra de arte de caráter literário, pois esta recebe, no processo de criação artística, um tratamento linguístico que envolve o
leitor na construção dos símbolos semióticos mais pertinentes ao discurso produzido.
Referências
EAGLETON.
Terry. O nome do pai: Sigmund Freud.
In: ______. A ideologia da estética. Trad. Mauro Sá Rego Costa. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1993, p. 192-211.
GREIMAS, Algirdas
Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de
Semiótica. São Paulo: Contexto, 2012.
GULLAR, F. Na Vertigem
do Dia (1975-1980). Disponível em:
. Acesso em: 26
set. 2016.
SILVA, Sandro A. Demandas
do presente: “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar. Anu. Lit., Florianópolis, v.18, n. 2, p. 128-138, 2013. ISSNe 2175-7917.
[1] Este consiste em uma sala no
subsolo a que se tem acesso por uma escada; após penetrar no poema,
deparamo-nos com um cubo vermelho; ao levantarmos este cubo, encontramos outro,
verde, e sob este ainda outro, branco, que tem escrito numa das faces a palavra
“rejuvenesça”. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D1042/biografia>. Acesso em 26 set.2016.
[2] Entrou para o partido comunista e
passou a escrever poemas sobre política e participar da luta contra a ditadura
militar que havia se implantado no país, em 1964. Foi processado e preso na
Vila Militar. Mais tarde, teve que abandonar a vida legal, passar à
clandestinidade e, depois, ao exílio. Deixou clandestinamente o país e foi para
Moscou, depois para Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires. Voltou para o
Brasil em 1977, quando foi preso e torturado. Libertado por pressão
internacional, voltou a trabalhar na imprensa do Rio de Janeiro e, depois, como
roteirista de televisão. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D1042/biografia>. Acesso em 26 set. 2016.
[3] Doutorando em Literatura
Brasileira na Universidade de São Paulo, Mestrado em Letras pela Universidade
Estadual de Maringá, Especialização em História e Cultura Afro-brasileira e
Africana - União Pan-Americana de Ensino, graduação em Letras Português-Inglês
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná e professor- Assistente do
Departamento de Letras da Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR/FECILCAM,
campus de Campo Mourão/PR. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/2175-7917.2013v18n2p123.
Acesso em: 26 set. 2016
[4] Ver: Anu. Lit., Florianópolis,
v.18, n. 2, p. 123-138, 2013. ISSNe 2175-7917. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/2175-7917.2013v18n2p123>. Acesso em: 26 set. 2016.
[5] Disponível em: .
Acesso em: 26 set. 2016.
[6] Enumeramos o texto conforme a
quantidade de versos (1 a 29) para fins didáticos.
[7] GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS,
Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2012.
[8] Segundo Aristóteles, filósofo
grego, a Catarse é o meio através do qual o Homem purifica sua alma, através da
representação trágica. Para ele, a tragédia é um estilo derivado da poética
dramática, e consiste na reprodução de ações nobres, por intermédio de atores,
os quais imitam no palco as desventuras dos heróis trágicos que, por escolhas
mal realizadas, passam da felicidade para a infelicidade, provocando na plateia
sentimentos de terror e piedade, purgando assim as emoções humanas. (Disponível
em: <http://www.infoescola.com/filosofia/catarse/>. Acesso em: 26 set. 2016).
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