Kant e Fichte: diálogos finitos e infinitos no interior do idealismo alemão
Edemir Fernandes Bagon
Nicolai Hartmann*, em A
Filosofia do Idealismo Alemão [p.15], afirmava ser a filosofia kantiana
como um raio abrasador que incitava
os espíritos mais dotados de uma época na investigação do princípio do
conhecimento humano. As ideias críticas de Kant foram seguidas
por um movimento polarizador de questões formuladas por aqueles que se tornaram
seus adeptos imediatos, como Reinhold**, Maimon e Beck– bem como seus opositores: Schulze
e Jakobi. Em outras palavras, kantianos
e antikantianos partiram das
necessidades metafísicas investigadas pelo filósofo de Königsberg, enquanto
condições “íntimas do espírito”, para uma concepção parcial de uma teoria do
conhecimento.
Ainda de acordo
com Hartmann, Reinhold procurou resolver a ideia da Crítica da Razão por meio de dois pares nocionais: forma /matéria e fenômeno/coisa-em-si. Desse modo, teria sido o primeiro a
transformar a Crítica em um sistema na sua chamada tese da consciência. Dadas as condições da representação em que o sujeito e o objeto do representar são diferenciados, Reinhold encontra na obra
de Kant necessariamente a distinção entre a forma e a matéria. A consequência imediata desse procedimento
é a constatação de que a representação produzida na consciência originara-se na
forma dada pelo sujeito à matéria recebida, entretanto não plenamente criada
pela consciência. Em outros termos, como afirma Hartmann [p.18]:
A representação também não é por isso uma cópia do objecto, tal como existe, independentemente da consciência, nem é decalque duma coisa-em-si. Basta só a subjectividade de forma para elevá-la a um original autónomo. É impossível representar um objecto na forma que tem independentemente da faculdade de representação. A forma objectiva da coisa-em-si é segundo sua essência, irrepresentável.
A representação também não é por isso uma cópia do objecto, tal como existe, independentemente da consciência, nem é decalque duma coisa-em-si. Basta só a subjectividade de forma para elevá-la a um original autónomo. É impossível representar um objecto na forma que tem independentemente da faculdade de representação. A forma objectiva da coisa-em-si é segundo sua essência, irrepresentável.
Para Kant, a
receptividade pertence aos sentidos enquanto que Reinhold crê na possibilidade da
coisa-em-si vir tanto da matéria
quanto do sujeito. Assim, receptividade e espontaneidade têm as suas formas que
precedem a ideia na qualidade de condições
dadas a priori. Hartmann escreveu [p.19]:
A afecção do sujeito pressupõe um afectante. Daqui não resulta, naturalmente, que a coisa-em-si, ao ser afectada pelo sujeito, se tornasse, cognoscível, mas que o sujeito tem, em geral, que poder formar um conceito dela, isto é, um conceito incognoscível como tal. Reinhold não descobre contradição alguma no conceito duma coisa-em-si que existente condiciona materialmente a representação.
A afecção do sujeito pressupõe um afectante. Daqui não resulta, naturalmente, que a coisa-em-si, ao ser afectada pelo sujeito, se tornasse, cognoscível, mas que o sujeito tem, em geral, que poder formar um conceito dela, isto é, um conceito incognoscível como tal. Reinhold não descobre contradição alguma no conceito duma coisa-em-si que existente condiciona materialmente a representação.
Qual o
significado do conceito da coisa-em-si
para Kant? Esse é o ponto, sob a ótica de Hartmann, que favoreceu o crescimento
do problema debatido, uma vez que as formulações kantianas não foram
sustentadas “claramente”. Fora assentada a doutrina do
Idealismo transcendental, segundo a qual todos os objetos da experiência deviam
ser entendidos apenas como fenômenos, meras representações que não têm
fora do pensamento nenhuma existência auto-fundada[1].
Entretanto, pela admissão do conceito de coisa-em-si
[noumeno], incognoscível, para princípio-autor da cisão da razão,
condicionante do caráter absoluto da síntese fundamental do conhecimento,
deixou-se à consciência teórica [Ich denke] a tarefa de intervir na
elaboração da noção do sujeito investigador da natureza. Neste espaço de
tematização, a consciência devia
conceber e desenvolver tudo de modo independente, na consolidação tanto das
categorias e representações espaços-temporais, como das faculdades da sensibilidade
[Sinnlichkeit] e entendimento [Verstand], conduzindo a razão crítica[2]
sob esse apriorismo formal, enquanto pressuposto universal, para
salvo-conduto da autonomia da razão e do sujeito. Para o autor da Crítica da Razão Pura, essa tarefa devia se desenvolver a base da fundamentação
discriminatória das fontes do conhecimento. A partir da imposição apriorista
formal, ele conceberá a Metafísica do conhecimento, entretanto, como mera
“crítica”, reduzindo-se a ser uma crítica do Direito, da Moral e da Religião (Metafísica
dos Costumes) e uma crítica do Conhecimento (Metafísica da Natureza). Theodor Adorno[3] caracterizou
assim o apriorismo formal:
(...) por um lado, do mesmo modo
que as formas categoriais do ‘eu penso’ requerem um conteúdo que lhes
corresponda e que não provenha delas mesmas, para possibilitar a verdade, (...)
por outro lado, se tomam o ‘eu penso’ mesmo e as formas categoriais kantianas
como uma espécie de datos.
Essencial
à fundação da razão teórica na medida em que indica a pretensão de assentar em
conformidade com o conceito de verdade, fundado pelos medievais (Adequatio
intellectus et rei), na relação de conhecimento sujeito-objeto, essa
doutrina é essencialmente transitória em seu itinerário fundado
unilateralmente. Os efeitos do apriorismo formal conduzem à redução de
todos os elementos constitutivos do conhecimento (o sujeito, o objeto e
a representação) apenas ao objeto (postulado da objetividade). Ou seja, o que
torna possível conceber a relação de conhecimento como necessária é um elemento
ideal; mas, partindo do pressuposto de que o objeto do conhecimento é dado
- e não um constructo - suprime-se assim o estatuto transcendental
da reflexão e busca-se o princípio condicionante dela no saber empírico [objeto],
e não em um fundamento desse saber. Essa mudança de enfoque produzida por
Reinhold, ou seja, esse debate sobre a origem da Faculdade de Representação como
fonte do fundamento da reflexão e da consciência, levou Hartmann [p.21] a
concluir que:
Quanto mais Reinhold se afasta do seu ponto de partida, tanto
mais formal e esquemática se torna a dedução e tanto menos sabe adaptar-se ao
esquema kantiano, isto é, tanto menos faz justiça às suas profundas intenções.
Somente na transição para a “teoria da razão prática” consegue mais uma vez um
lance audacioso que se revelou fértil nas suas consequências.
Em
Reinhold, a ideia do primado da razão prática é o ponto de partida de todo o
conhecimento. Noutras palavras, o desejo necessariamente
não está condicionado pela representação – mas sim a sua teoria filosófica.
Hartmann afirma que tal dedução progride simplesmente do dependente para o independente e superior [p.21]. Desse modo,
consegue revelar a estratégia empregada Reinhold para chegar a seus primeiros
resultados de sua dedução no próprio esquema kantiano. O conhecimento é a “consciencialização
do objeto”. Logo, a consciencialização de um objeto é mais do que a sua representação.
Na verdade, aqui, dois atributos são colocados em pauta: sensibilidade e entendimento.
Através da relação entre sensibilidade
e entendimento constituída na faculdade de conhecer, ou na sua faculdade correlata [receptividade e
espontaneidade®faculdade
representativa], Reinhold chega ao “princípio
kantiano de que as intuições sem conceito são cegas e de que os conceitos sem
intuição são vazios”.
Se, num primeiro momento, Reinhold levou a
cabo a teoria da forma e da matéria acerca de suas reflexões em relação ao que
Kant havia escrito - Schulze***apontou uma petição de princípio no fato de
Kant ter admitido que o conhecimento começa com ação de objetos sobre nossos
sentidos[4].
De acordo com Schopenhauer[5]
[Fragmentos para a História da Filosofia, p.84]:
(...) ao invés de seguir-se esse
caminho, confundiu-se a exposição kantiana com a essência da coisa,
acreditou-se que, estando aquela refutada, também esta o estaria; tomou-se o
que eram apenas argumenta ad hominen por argumenta ad rem e
declarou-se a filosofia de Kant como insustentável devido aos ataques de
Schulze.
Para
Hartmann, Schulze teria desferido um “contra-ataque” cético à teoria kantiana
sob a luz da de Reinhold. A tese de Schulze é a negação da tese de Reinhold. O
argumento de Schulze é aparentemente simples: se são as coisas-em-si
incognoscíveis, não se pode saber se elas são ou não causas do conhecimento.
Mais ainda, caso sejam cognoscíveis – “desmorona-se no nada o resultado da
Critica”. O ceticismo de Schulze assevera que a Crítica de Kant assenta-se sob
uma série de conclusões que ela mesma tem por “impossíveis” (o espírito, a
razão, o sujeito transcendental). Logo, se as coisas-em-si são incognoscíveis, não podem representar o espírito
enquanto fundamento do conhecimento [HARTMANN, p. 26]. Nesse sentido, portanto,
Schulze aproxima-se de
Hume que defendia a ausência de um princípio seguro de ciência empírica,
contrariamente ao pensamento de Kant. Segundo Maria Lúcia Cacciola[6]:
A
questão da preeminência da moral, a saber, da filosofia prática sobre a teórica,
é central na filosofia de Kant e dos assim chamados pós-kantianos. Kant
estabelece sua distinção fenômeno e coisa-em-si, no âmbito teórico, para dar à
filosofia estatuto de ciência, ou seja, para com a crítica mostrar
os limites do saber, sinalizando ao mesmo tempo para a busca
do incondicionado pela Razão, como que para garantir um espaço para o
suprassensível; deixa a necessidade reger inexoravelmente no mundo
dos fenômenos abrindo um espaço para pensar a liberdade fora do
mundo fenomênico. Com isso mantém-se o determinismo na natureza,
permitindo pensar, num mesmo ato, a vontade humana como livre
garantindo a liberdade da ação moral.
Em
síntese, Schulze afirma não conhecer a consciência mais do que as suas
representações. A importância de seu Enesidemo encontra-se na descoberta do
erro de Reinhold. Entretanto, será Fichte quem irá focar com lentes de aumento
o mesmo erro de Kant de fazer valer a causalidade além da representação. Para
Jacobi, o espírito da filosofia de Kant estaria na afirmação de que “nada temos
a ver com os objetos, mas apenas com nossas representações”. E Fichte, segundo
Rubens Torres, “é um dos mais resolutos e consequentes adversários
pós-kantianos da coisa-em-si”. Se, para Jacobi, a dificuldade principal da Crítica está na admissão de uma
receptividade, essa dificuldade é intransponível, já que só tem sentido a noção
de sensibilidade diante da hipótese de uma determinação efetiva, portanto do
objeto agindo como coisa-em-si. Assim, Jacobi vai rejeitar todo projeto crítico
e “o testemunho de Kant servirá apenas para instruir o processo da razão: para
indicar o ponto a partir do qual a razão deve calar-se para ceder o lugar à fé
(e, aliás, uma fé irracionalista, no sentido jacobiano)”.
Para Fichte o lugar em que é possível
desembaraçar-se desse conceito incômodo [coisa-em-si] é o meio da Crítica. Segundo ele, na Vergleichung,
se a crítica começa com o eu, admite
depois objetos fora do eu, que tem
seu lugar próprio no senso comum e é só no meio da Crítica, no esquematismo da
imaginação que o sujeito se torna também objeto. O fato de que os pós-kantianos tenham hipostasiado essa coisa-em-si, transformando tal conceito
operatório num conceito realista e metafísico, não destrói o projeto crítico, e
nem exige que se recaia no dogmatismo. A solução estará dada no esquematismo,
em que o eu adquire sua condição de sujeito-objeto,
por meio dos esquemas, que são por um lado representações puras ou intelectuais
e por outro, sensíveis. “A imaginação a priori revela-se então como a fiadora
da verdadeira unidade transcendental entre sujeito e objeto.” Como diz
Vuillemin[7],
citado por Rubens, “a imaginação kantiana é, portanto a intuição intelectual de
Fichte.” De fato o meio da crítica, a saber, momento em que o eu adquire sua condição de
sujeito-objeto [egoidade], corresponde ao início da doutrina-da-ciência. Assim,
escreveu Fichte[8]:
Caráter fundamental da doutrina-da-ciência: o conhecimento
com o caráter da intuição – seja ele qual for – é embaraço em uma lei qualquer,
e produto dessa lei. Doutrina-da-ciência – entender completo, ver levado a cabo
(em contrapartida, em toda parte dela, há algo que permanece oculto, que ainda
está por ser visto), portanto completa liberdade. [...] Desse modo, doutrina-da-ciência é conhecimento completamente
livre, que tem a si mesmo em seu poder. – A completude e perfeição da liberdade
decorrem justamente de que o conhecimento mesmo, em sua forma, é entendido a
partir daquilo que, em si mesmo, não é conhecimento e imagem. – E é sob esse
caráter de completa liberdade que a doutrina-da-ciência deve ser considerada
preferencialmente aqui: este é o propósito de nossas conferências.
Em O
Espírito e a Letra [Cap. II - A Imaginação Radical], Rubens Rodrigues Torres
Filho aponta o papel da imaginação pura
no interior da filosofia fichteana. De acordo com Rubens Rodrigues, ao intervir
sobre a distinção kantiana entre o conceito
e intuição, Fichte estabeleceu certo
número de cumplicidades metafóricas e também conexões conceituais de modo que a
complementaridade entre o conceito e a intuição constituintes da questão
formulada por Kant [dos juízos sintéticos a priori] fora posta no nível
exclusivamente teórico Todavia, tratava-se de uma teoria de natureza
propedêutica dependente de um princípio que estaria além da passividade do eu:
o não-eu.
A verdadeira questão imposta ao idealismo
alemão e ao realismo [kantianos]
seria saber, portanto, qual o caminho a ser seguido a fim de explicar a representação. De um lado, a resposta de
Kant revelou-se na sua dialética
transcendental enquanto que, para Fichte, a representação e a receptividade
só poderiam desprender-se da razão infinita graças à interioridade ou intuição intelectual. Ou seja, o que é
posto como ponto de partida, aqui, é apenas a forma da egoidade. Entre a intuição e a ideia, Fichte promove a imaginação como mediadora. Desse modo, a
imaginação liberada da passividade do sentimento poderá exercer sua “produtividade da representação e de seus
objetos”. [Kant] precisa dos objetos ideais
para preencher o tempo e o espaço; nós precisamos do tempo e do espaço para
poder colocar neles os objetos ideais. [WL 1794; SW, I, 186 – nota.]
Fichte
parece considerar a filosofia crítica
limitada na sua tentativa de explicar o tempo e o espaço como formas puras da
intuição. Segundo ele, as “meras formas do pensamento” não davam conta daquilo
que estaria para além dos “caracteres e relações da coisa”. Contrariamente ao
criticismo, considera Fichte a coisa-em-si
“relações coligidas pela imaginação”. Desse modo, o objeto definia-se enquanto
síntese originária dos conceitos. Para Rubens Torres, a imaginação na concepção
fichtiana adquiriu status independente,
pois deixara de ser simples mediação entre atividade e passividade para agir
como instância autônoma.
Surge, assim, outro problema a ser
investigado por Fichte: o real só se manifesta quando o eu é considerado como ponto de vista da prática. Imaginação produtiva
e intuição intelectual passam a ser
esquematizações na Doutrina da Ciência.
Assim, a consciência ou intuição
intelectual assume o papel de fundamento do ser. O pensamento é a intuição
intelectual. A ação ou o fazer algo está
consignado ao pensamento absoluto. E
este fazer revela o verdadeiro conteúdo do saber:
a liberdade.
Portanto, liberdade significa: não
há natureza acima da vontade, esta é a sua única criadora possível, por isso,
em geral, não há uma natureza absoluta, não há a não ser como principiado. Quem
afirma uma natureza absoluta pode, no máximo, deixar para a inteligência a
contemplação.(Fichte: Introdução á Teoria do Estado, p.167, §385. Col. Os Pensadores)
Rubens Torres aponta uma distinção primordial
entre a intuição intelectual, a imaginação pura e a intuição sensível. O autor alerta para o risco do idealismo transcendental, ao considerar
a intuição intelectual como fundamento da totalidade do saber, imitar o idealismo dogmático – “que exclui
inteiramente a atividade prática de suas investigações”. Para ele, toda
reflexão transcendental abrange a atividade prática e teórica, suspendendo a
“convicção realista do senso comum”. Por essa razão, segundo Rubens Torres,
Fichte concebeu sua doutrina-da-ciência
tendo em vista a fundação do saber teórico ao lado de uma fundação do saber
prático. A parte teórica tendo que explicar a representação e, destarte, tornando possível o pensamento de algo que
lhe é exterior. A parte prática buscando explicar o eu e o sentimento de sua limitação. Resultando dessas premissas, um
eu dependente da realidade visto que
“nada é real para o eu sem ser também
ideal”. Logo, a representação e a imaginação figuram enquanto fundamento
uno da egoidade fichtiana.
A rigor, essa é a faticidade
absoluta, descoberta pela radicalidade da investigação genética, e nela se
resume aquela irredutibilidade da existência, por força da qual a realidade do
mundo exterior não pode, em definitivo, ser objeto de uma demonstração, nem
mesmo de um conhecimento, mas unicamente de uma crença. Sua manifestação
transcendental é precisamente aquela defasagem intransponível entre o finito e
o infinito, que constitui o espaço em que irá desenrolar-se a própria reflexão. (Filho, R. T. O Espírito e a Letra. Cap. II, p. 114)
A diferença entre representação e imaginação
é dada pela oposição daquilo que é finito
e infinito constituído no espaço
e, portanto, objeto de reflexão. Para Fichte, a imaginação no terreno prático
vai ao infinito, até a Ideia pura indeterminada ou mesmo
impossível. Ela oscila entre o objeto e
o não-objeto, e se corresponde por
meio da manifestação da razão ao ato inaugural da filosofia. De acordo com
Rubens Torres, a doutrina-da-ciência levou
o conceito de liberdade ao extremo, a
saber: enquanto princípio da razão finita
inconcebível em todo conceber particular. Para ele, ainda que a doutrina desenvolva sua construção
inteiramente a priori, ela conserva
seu estatuto de ciência – pois, expõe seu esquema a partir do saber do próprio saber, da experiência como saber, do ser da liberdade, da liberdade do
ser e do absoluto.
Um juízo sobre aquilo a que nada
pode ser igualado nem oposto (...) [tal juízo] não está submetido ao princípio
de razão, pois não está submetido à condição de sua validade; esse juízo não é fundado,
mas funda, ele próprio, todo juízo possível; não tem nenhum razão ou
fundamento, mas fornece, ele próprio, a razão ou fundamento de todo fundado. O
objeto de tais juízos é o Eu absoluto, e todos os juízos de que ele é sujeito
valem pura e simplesmente e sem nenhum fundamento. (Fichte, J. G. Doutrina da Ciência, p. 112- Col. Os Pensadores)
Fichte
elucida e demonstra as condições pressupostas para a reflexão como vinculadas
ao caráter genético de obtenção das categorias; esse elemento genético reside
em que o direito de aplicar a categoria de “realidade” “não se deriva de
nenhum outro, [mas] nós o temos pura e simplesmente. Ao contrário, é
dele que têm de ser derivados todos os outros possíveis”. Assenta
nisso que a Doutrina da Ciência “pressupõe as regras da reflexão
e da abstração como conhecidas e como válidas”, ao mesmo tempo em que “não
tem de se envergonhar disso ou fazer disso um segredo ou ocultá-lo”,
já que realiza isso com vistas a tornar-se inteligível, compreensível.
Diferentemente
de Kant (para quem o diverso de representações era submetido exclusivamente à
unidade da consciência como um conceito teórico, o Eu penso), o
diverso da consciência para Fichte contém já as condições da completa
autoconsciência. E, na tarefa de provar que há uma conexão sistemática no
diverso das representações fundamentais, a Doutrina da Ciência estabelece
uma série demonstrativa da reflexão, a partir dos três princípios constitutivos
da Ciência pura do pensamento, como uma exigência do “Saber”, enquanto “marcha
[que] é integralmente demonstrativa, [e] constitui uma única cadeia
ininterrupta de raciocínio”. Nesta
série, a estrutura do texto da Doutrina da Ciência condiciona seu
elemento potencializador, motor do desenvolvimento e da compreensibilidade da
Ciência das ciências em geral, no incondicionado (“existência efetiva”)
a partir da consideração da posicionalidade absoluta do Eu como
atividade só mediata.
Através
disso, como forma de dar continuidade ao desdobramento sistemático a partir do
princípio Eu sou, tem-se então como elemento aporético, nesta
perspectiva, que o idealismo (quantitativo) se autocondiciona pelo suprimir da
mediação posta por aquele pôr mediato, evidenciando o caráter meramente
pressuposicional das leis da reflexão e da abstração, na
pressuposição da inteira natureza como dada, antes de demonstrar
as determinações desta como pensáveis e desdobráveis. Mediante desdobramento
imanente de todas as determinações transcendentais no princípio do eu, e enquanto o ato exteriorizado do pôr
mediato recrudesce a demonstração das pressuposições, estas se
mostram atreladas meramente ao entendimento (a reflexão) e à Imaginação
transcendental (o movimento dialético) – e não à razão (Vernunft) como
faculdade superior.
Assim,
se Fichte demonstra, por um lado, que as faculdades transcendentais surgem
geneticamente de acordo com a atividade originária do eu – na superação da exposição da razão como fundada por faculdades
transcendentais, arbitrariamente pressupostas –, por outro lado, ele não
consegue justificar totalmente, pelo princípio da “autoconsciência”, de que
modo o sistema irrompe, originária e absolutamente, segundo um princípio cuja
fundamentação circular não possa evitar incorrer na má-circularidade do
postulado regulativo, deontológico,
para princípio propulsor e potencializador à base do desenvolvimento do
sistema. Ficando
estabelecido pelo estatuto da imaginação transcendental, pela atividade
originária desta faculdade, o limite entre conhecimento [ciência] e Metafísica
(Doutrina da Ciência), e devendo permanecer por isso enquanto baliza
para que seja entendida a divisão ou fronteira entre Conhecimento e Moralidade,
Conhecimento e Estética, Conhecimento e Direito. À revelia do que Kant tinha em
vista para a Filosofia transcendental,
Fichte realizou a fundamentação do primeiro princípio baseando-se nos subsídios
deixados pelo texto kantiano.
Bibliografia
Fichte, J. G. Col. Os Pesadores. São Paulo, Ed. Abril, 1973 pp. 106-107.
Filho, R. R T. O Espírito e a Letra: a crítica da imaginação pura. São Paulo, Ática,
1975 pp. 84-119.
Hartmann, N. A Filosofia do Idealismo Alemão: trad. de José G. Belo. Lisboa,
fundação Calouste Gulbenkian pp. 15-26.
Schopenhauer, A. Fragmentos para a História da Filosofia: trad., apresentação e
notas de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo, Iluminuras, pp. 58-87.
* Hartmann, N.: filósofo alemão (1882-1950). Foi professor em Marburgo, Berlim e em Göttingen. Seus primeiros trabalhos
orientam-se segundo o neokantismo da Escola de Marburgo. Posteriormente, altera sua
posição teórica, sob a influência da fenomenologia
de Edmund Husserle das filosofias de Hegel,Max Scheler e Wilhelm Dilthey, embora não se prendesse
a qualquer uma delas.
** Karl Leonard Reinhold nasceu em Viena, 1785.
Ingressou Aos 14 anos no Colégio dos Jesuítas de Santana, e logo em seguida,
foi para o Colégio dos Barnabitas onde ficou por nove anos como noviço e
professor de Filosofia. Reinhold é o primeiro que surge com a pretensão de
transformar a Crítica da Razão Pura em um sistema. Por volta de 1797, tornou-se
partidário da Teoria da Ciência de
Fichte. Publicou Cartas sobre a Filosofia
kantiana [1786-1787] e Ensaio para
uma Nova Teoria da Faculdade de Representação [1789]. Morreu em 10 de abril
de 1823.
[1]Crítica da Razão Pura, B 518/519. Diz Kant: “Demonstramos
suficientemente que tudo o que se intui no espaço ou no tempo e, por
conseguinte, todos os objetos de uma experiência possível para nós, são apenas
fenômenos, isto é, meras representações que, tal como as representamos enquanto
seres extensos ou séries de mudanças, não têm fora dos nossos pensamentos
existência fundada em si. A esta doutrina chamo idealismo transcendental”.
[2] “A crítica das faculdades de conhecimento a
respeito daquilo que elas podem realizar a priori não possui no fundo qualquer
domínio relativamente a objetos. A razão é que ela não é uma doutrina, mas
somente tem que investigar se e como é possível uma doutrina, em função da
condição das nossas faculdades e através delas”. [Crítica do Juízo,
XX, p. 20]
[3]
In: Trés Estudios sobre Hegel,
p.30
***
Gottlob Ernst Schulze, 1776-1833, filósofo cético alemão, autor de Enesidemo, texto que surgiu
apocrifamente em 1792.
[4]
In: Fragmentos para a História da
Filosofia, de Arthur Schopenhauer – tradução, apresentação e notas de Maria
Lúcia Cacciola, [p.84 – ver nota 52]. Ed. Iluminuras.
[5] A.
Schopenhauer, 1788-1860, foi o autor de O
Mundo como Vontade e Representação.
[6]
Cacciola, M. Lúcia. O “eu” em Fichte e
Schopenhauer. Texto pesquisado em http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.
php/doispontos/article/viewFile/9533/6612.
[7]
Jules Vuillemin [1920-2001], um dos primeiros filósofos que se interessou pela
filosofia analítica. Autor de Quais são
os sistemas filosóficos?(1986), L'kantien intuitionnism, (1994), entre outros.
[8]
Fichte, J. G. Introdução à Teoria do Estado – trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho. Col. Os Pensadores. Ed. Abril,
1ª ed., S. Paulo, 1973 – p.166 § 382
Comentários
Postar um comentário